A crise da cana é geopolítica, social e econômica, afirma Elizabeth Farina

07/08/2013 Cana-de-Açúcar POR: Revista Agro DBO
Pode-se qualificar de complicada a situação da indústria sucroalcooleira. É uma autêntica sinuca de bico, como se diz no jargão popular, com possíveis reflexos econômicos nos futuros investimentos, conforme se pode depreender das palavras de Elizabeth Farina, a economista que preside a UNICA – União da Indústria de Cana-de-Açúcar desde o final de 2012, na entrevista exclusiva concedida para a Agro DBO, e que foi conduzida pelo editor executivo, Richard Jakubaszko. Desde que assumiu a presidência da Unica, praticamente quase nada mudou, afora o panorama político que parece ser mais amigável, com diálogos produtivos com o governo federal, na medida em que antes dela houve um período de pouco ou nenhum diálogo.
Apesar de nunca ter convivido com notável intimidade junto à cana-de-açúcar, Elizabeth Farina possui em seu currículo o peso de ser professora universitária e também co-fundadora do Pensa, no início dos anos 1990, dentro da FEA/USP – Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, juntamente com Décio Zylbersztajn. O Pensa tem como finalidade promover estudos sobre o agribusiness brasileiro e fez contribuições relevantes ao setor. Como se poderá perceber na entrevista, Elizabeth Farina já acumulou, decorridos pouco mais de 8 meses no cargo, traquejo e experiência suficientes para dar respostas a quaisquer debates ou críticas que envolvam o setor.
Agro DBO – A atual crise do setor sucroalcooleiro, que se arrasta desde 2010, é econômica, social ou política?
Elizabeth Farina – Na verdade é um processo de uma crise que vai se estendendo no tempo e apresenta desdobramentos. A crise é de fundo econômico, mas gera um imenso problema social, e só poderá ser resolvida de forma política. O problema econômico, da baixa rentabilidade e da falta de investimentos, e nisso há uma convergência de opiniões dos vários agentes quanto ao diagnóstico, é decorrente da crise financeira internacional de 2008, ainda com reflexos profundos no setor, e que pegou os investimentos no contrapé.
Então, tudo começa por aí. Mas a evolução da crise recebeu contribuições do Murphy (Nota da redação: dito popular de que “se algo pode dar errado, vai dar errado”). Tivemos de lá para cá três safras complicadas em termos climáticos, sendo uma delas com nenhuma chuva e outras duas com muita chuva no período de colheita, como foi o ano passado. Estes são fatos comuns da produção agrícola, mas que afetaram a agroindústria da cana na produção de açúcar e de etanol. Tudo isso alterou a logística, de plantio e de colheita, e provocou a não renovação dos canaviais, que é também consequência da crise financeira, e essa potencializou o gargalo dos investimentos no setor.
Agro DBO – E o lado social?
Elizabeth Farina – Sob o aspecto social a crise é evidente, pois a cana tem forte impacto sobre os inúmeros empregos que o setor gera onde ele opera, pois demanda altos volumes de mão de obra. Nesse meio tempo tivemos fortes mudanças tecnológicas (Colheita mecânica) muito importantes, que obrigaram as usinas a ter altos investimentos com requalificação da mão de obra. Agravando o problema, cerca de 40 usinas em todo o Brasil foram fechadas e 10 que estão desativadas, ou seja, não estão moendo,o que gerou mais desemprego. O lado bom dessa história é que outro dia estive numa usina e desejei conhecer alguns dados sobre agricultura de precisão. Falei com um tratorista, que me deu profundas explicações, e, no final da conversa, quando perguntei a formação dele, me disse que era cortador de cana até três anos atrás.
Agro DBO – O grande gargalo, nesse momento, que inibe investimentos, está no baixo preço da gasolina?
Elizabeth Farina – Diria que o baixo preço da gasolina é um fator focal, mas é mais importante ainda do que o preço a ausência de regras confiáveis de longo prazo. Quando a gente fala que é o preço da gasolina a gente está olhando o hoje, mas é mais do que isso, é ausência de política de preços de combustíveis no Brasil, no longo prazo. Há uma clareza, dentro dos analistas do setor, de que mesmo que os preços da gasolina no mercado internacional não tenham uma tendência de alta, ainda assim é uma regra que coloca num risco de mercado o foco do negócio, quer dizer, tira o risco institucional. Isso é muito importante. Agora, no momento atual, o baixo preço da gasolina no Brasil, que está abaixo do preço de importação do produto, de fato tem um efeito negativo, e até mesmo perverso, por um motivo muito simples: como a gente tem o etanol hidratado, que é carburante, ele compete diretamente com a gasolina na bomba, e o grande ativo desse setor é o carro flex fuel, onde o consumidor é soberano nas suas escolhas.
Agro DBO – Mas esse etanol hidratado, usado puro pelos carros flex, representa 25% do negócio cana, sendo que 25% seria o etanol não hidratado e 50% para açúcar.
Elizabeth Farina – É verdade, mas este ano o açúcar está com preços em queda no mercado internacional, e há um estoque mundial enorme. Mas o açúcar foi o sustentáculo nos anos anteriores, ajudou as empresas, e agora não irá ajudar.
Agro DBO – Quais são as frentes estratégicas de batalha da UNICA para contornar / resolver a questão dos preços e da política de combustíveis para o longo prazo?
Elizabeth Farina – Olha, até completando meu raciocínio anterior, é importante registrar que o setor produtivo tem aplicado uma política austera de redução de custos.
É importante isso, não há outro caminho, mesmo que se adote uma nova política de longo prazo, que se defina uma matriz energética, e de preços para a gasolina, a redução de custos terá de ser feita. A gente tem essa matriz energética, está publicada, é do pleno conhecimento de todos, mas ela teria de ser revista, porque não vai acontecer, aqueles números estão defasados, e porque não tem consistência com o resto das ações governamentais.
Agro DBO – O governo abandou a indústria sucroalcooleira?
Elizabeth Farina – Não diria que abandonou... Mas não ajudou a alavancar. Deve-se entender que houve muito investimento. Todos sabem disso. Não em todas as unidades, mas especialmente investimentos que reduzam custos. A produtividade agrícola está sendo retomada, vamos observar esses ganhos já neste ano, a renovação dos canaviais continua, e até a expansão das áreas novas de plantio foi retomada. O que não expande nesse momento é a capacidade industrial de moagem. Porque isso exigiria investimentos em novas unidades industriais e existem muitas nuvens no horizonte para que se façam investimentos de longo prazo, e que são altos investimentos de capital intensivo.
Os investimentos que têm sido feitos são para valorizar os investimentos já feitos, de novas unidades, de infraestrutura, como estocagem, em cogeração de energia, em aumento de produtividade, e tudo isso envolve uma grande quantidade de recursos.
Agro DBO – Que caminhos existem para o setor sucroalcooleiro reconquistar a lucratividade e, por consequência, os novos investimentos, em novas usinas, ampliação das áreas de plantio?
Elizabeth Farina – A gente entende que a regra do preço dos combustíveis é uma regra de ouro que é aquela que guia o investimento em alguma coisa que é combustível. Essa regra é muito importante. Isso não significa que o setor ache que esta regra, se colocada em prática, soluciona todos os problemas, e que o preço do petróleo vai abrir o espaço para a energia renovável, com os custos de produção que o setor tem hoje, ainda que tenha sido feito um grande investimento para ganhos de eficiência. Sabemos que em todo o mundo a energia renovável se expande com base em políticas públicas que procuram valorizar um combustível que gera o que se chama de externalidades positivas para a sociedade, e que é algo intangível, e não está embutido no preço que se paga na bomba do posto de combustível. São efeitos externos, seja no meio ambiente, seja na área social, pela geração de empregos, pela qualidade do emprego, questões da saúde, decorrentes da melhoria ambiental, impacto sobre a indústria de bens de capital nacional.
Tudo isso não aparece nos preços dos combustíveis renováveis, mas eles são valores importantes, inclusive econômicos, pelos quais a sociedade e o governo têm de lutar. De outro lado, a gente tem a gasolina, que tem externalidades negativas, porque emite CO2, porque polui, porque gera problemas de custos com saúde. Já existe consenso, entre os
especialistas em políticas públicas, não só de combustíveis, mas de outros setores também, de que deve haver uma estrutura de taxação de impostos que reconheça e que incorpore essas externalidades, e isso pode corrigir em grande parte esses desvios, sinalizando positivamente para os investimentos de energia renovável. Se a gente taxa o combustível fóssil, que gera essa externalidade negativa, então é possível gerar uma competitividade maior para os combustíveis renováveis, que geram externalidades positivas, e reequilibra esses níveis de investimento, reduzindo o consumo do fóssil e aumentando no renovável. E esse é um caminho como regra de política pública positiva, que mostre as dinâmicas do mercado internacional, casada com um programa de tributação que reconheça externalidades negativas e positivas.
Agro DBO – Traduzindo o seu economês para o popular: lá fora, especialmente na Europa, eles subsidiam os combustíveis renováveis e taxam os fósseis. Na questão dos impostos o problema é mais estadual (diferenças do ICMS que taxam o etanol, em que SP é 12%, e manteve 25% na gasolina. MG é 18%, e há uma variação, Brasil adentro, entre 12% e 25% de ICMS). O que se deseja para o etanol, o subsídio?
 
Elizabeth Farina – Não precisa subsidiar. Agora, sem dúvida que há os impostos estaduais, mas há também os federais, como a CIDE – Contribuição por Intervenção no Domínio Econômico para a gasolina, que era de R$ 0,28 por litro e foi reduzindo até zerar, para não subir o preço final da gasolina. Ou seja, a gente já tinha essa política de diferenciação, essa regra, que estimulava o etanol, e hoje não tem mais, e fez o etanol perder competitividade por decreto, e, além disso, o preço da gasolina está congelado desde 2005. Ao mesmo tempo, o setor do etanol sofreu aumentos de custos, que não estão associados ao mercado de combustível fóssil, e que vem da agricultura, entre eles o custo do arrendamento da terra, da mão de obra por causa do pleno emprego, dos fertilizantes e agroquímicos, que não foram acompanhados por aumentos de produtividade no mesmo ritmo.
Daí que temos um custo unitário de produção que subiu e que provoca a perda de competitividade do etanol. Fora isso, há que se computar os gigantescos custos de legislações ambientais e trabalhistas, que incidem sobre o custo do etanol. Com a gasolina de preço congelado isso significa que o etanol não consegue repassar os custos de produção para o preço final, porque se tentar repassar o consumidor põe gasolina, e aí gera uma situação de prejuízo a cada litro de etanol vendido, o que vem se somar às dificuldades financeiras da crise de 2008, ao estresse dos endividamentos pelos altos investimentos feitos. Antes, o açúcar tinha alto preço no mercado internacional e segurava o rojão, mas agora não mais.
De outro lado, sobre a questão tributária, a decisão da presidente Dilma em desonerar o etanol do PIS / Cofins no início deste ano foi altamente positiva, e a medida provisória deve ser votada no Congresso em setembro próximo, mas já está em vigor.
Agro DBO – A conquista do status de produto commodity para o etanol nacional é uma das frentes da UNICA, há muito tempo, mas conquistar essa posição significaria espaço para exportar, e isso representaria desabastecimento no mercado interno. Como a UNICA vê isso? Não é um tiro no próprio pé? O Governo Federal critica o setor justamente por não abastecer integralmente o mercado interno, como já vimos em alguns anos, quando chegamos a importar etanol de
milho dos EUA.
Elizabeth Farina – Etanol ainda não é commodity, porque para ter esse status precisa de vários mercados fornecedores e outro tanto de consumidores, além de entenas de compromissos. Não vai acontecer um mercado commodity de etanol no curto prazo. Mas já temos livre trânsito alfandegário com os EUA via acordo bilateral de tarifa zero de importação, isso facilitou muito, mas essa situação pode ser brecada a qualquer momento. Na Europa o etanol da cana ainda tem altas taxas de impostos, alfandegárias ou não. De toda forma, exportamos quase nada para lá. Na África já existem algumas iniciativas de integração, a Embrapa inclusive, e tímidos investimentos de usinas brasileiras, mas a gente tem de convir que aqui no Brasil ainda existe muito espaço para preencher. O difícil nisso tudo é que a África dependeria totalmente do mercado europeu, que é muito fechado.
 
Sobre possível desabastecimento interno, em função de exportações, é mais mito do que uma situação que deve ser pontuada.Por que isso? Primeiro, porque é importante a gente ter mercado para exportação. Em casos de uma safra mais abundante, teríamos a alternativa de um mercado de exportação. A ideia é abrir e construir aos poucos esse mercado internacional, porque isso não se faz de uma hora para outra, muito menos em situações de emergência unilateral do vendedor.
E se a gente não fizer isso agora não vai acontecer nunca. A questão importante é o mercado interno, ele terá que ser abastecido. Acho que a desconfiança em relação ao abastecimento, foi do governo em relação ao setor produtivo, foi amenizada por um instrumento de conversa, que foi a mesa de conversa tripartite.
Nessa mesa senta o distribuidor, que tem sempre contato com o consumidor, o produtor, que sabe o que está acontecendo com a safra, e o governo, que é o regulador, e estamos sempre conversando sobre tudo. Foi isso que levou o governo a ter a confiança de aumentar novamente a mistura do etanol na gasolina, de 20% para 25%.
Agro DBO – O etanol de 2ª geração ainda é futuro remoto para a solução dos atuais problemas?
Elizabeth Farina – O etanol celulósico não veio ao tempo que se imaginava, nem aqui no Brasil e nem nos EUA ou na Europa. Mas já existem uns cinco projetos brasileiros e promessas de que vamos produzir em termos comerciais o etanol de 2ª geração a partir do ano que vem. O cronograma mais conhecido é o da GranBio, em Alagoas, mas há outros projetos como o da Coopersucar, da Raizen e o da Petrobras.
Agro DBO – Como a UNICA vê o futuro do etanol brasileiro? É um blue sky dream?
Elizabeth Farina – Não vejo só um blue sky dream. Vejo um blue sky dream porém com um monte de nuvens e muitos cúmulus nimbus. Isto porque ainda temos muito a percorrer. Na verdade, a gente tem de ter uma luz lá no final do túnel que nos dê segurança de que se investirmos pesado a gente não vai se decepcionar quando o etanol chegar na bomba e não tiver competitividade, porque o preço da gasolina não muda há cinco anos. A gente, pra chegar lá, tem de aproveitar todas as oportunidades que existem, e todo o valor que está embutido no etanol, de energia renovável, limpa, socialmente enriquecedora, a gente tem de ultrapassar esse competidor fóssil, e nem sempre esse processo é justo.