A lei da entropia
19/03/2018
Agronegócio
POR: Revista Canavieiros
“Ela sugere que toda organização esgota sua energia inicial na crescente desorganização, o que é agravado, no caso das estatais, pela interferência da política partidária”, escreveu o ex-ministro, economista, professor, e uma das maiores cabeças pensantes brasileira, Antonio Delfim Netto, na sua coluna semanal na Folha de S.Paulo, do último dia 24 de janeiro.
Um dia antes ele concedeu entrevista exclusiva à Revista Canavieiros onde mostrou que as crises pelas quais passou o setor sucroenergético também foram ocasionadas por algo semelhante à essa entropia, só que nesse resultado foi a falta de interferência do estado, aliás, o seu completo abandono.
Por: Marino Guerra
Revista Canavieiros: Em 1973, quando estourou a primeira crise do petróleo, em decorrência da Guerra do YomKippur (quando em retaliação ao apoio dos EUA à Israel no conflito contra principalmente Egito e Síria, os países árabes pertencentes a Opep, elevaram o preço do barril em mais de 400%, causando uma gigantesca recessão mundial), o senhor era ministro da fazenda (Governo Costa e Silva), quais eram as opiniões internas sobre a atitude que deveria ser tomada em relação à política de combustíveis?
Antônio Delfim Netto: Esse cenário mostra perfeitamente onde se encaixou e a importância que assumiu o álcool como alternativa à gasolina na década de 70. Simplesmente porque não havia produção de gasolina no Brasil, era tudo importado, e isso, além do cenário mundial, gerava um resultado negativo na balança de pagamentos limitando o crescimento da economia.
Então, se você conseguisse encontrar um substituto para a gasolina seria algo extremamente significativo. E foi isso que ocorreu, através de um aperfeiçoamento do álcool que aconteceu mais ou menos em paralelo ao agravamento da crise do petróleo.
Revista Canavieiros: Mas o Brasil sentiu as consequências da crise?
Delfim Netto:Quando a crise do petróleo realmente chegou, durante os anos de 1974-75, o Brasil foi pego de calça curta, porque a Petrobras, a qual tinha o general Geisel como presidente, já estava com vinte anos de funcionamento, e sua produção estagnada em praticamente 120 mil barris por dia durante muitos anos.
Mas isso não era uma exclusividade brasileira, começou uma série de quebradeira em todos os países consumidores, porque era impossível acompanhar o preço do petróleo. No Brasil o cenário era muito simples, 80% do consumo, que crescia a 10% ao ano, era importado, ia ser uma tragédia.
Isso fez ficar visível que nós não podíamos importar, porém precisávamos montar programas de produção de combustível interno, o que levaria algum tempo. Nós só conseguimos nos manter como importadores porque se montou um mecanismo, uma espécie de moto-contínuo (movimento perpétuo) que todos sabem que não funciona, pois viola as leis da termodinâmica (onde é preciso ter uma fonte de energia para que um sistema possa funcionar).
Esse sistema consistia onde países como o Brasil conseguiam um crédito no banco, para pagar os árabes, e esses financiavam os bancos, gerando uma triangulação, que empurrou o problema com a barriga até ficar insustentável em 1979, quando a crise atingiu o seu ápice.
Revista Canavieiros: E aonde estava o projeto do álcool, que mais tarde teria o título de Pró-Álcool, nessa verdadeira tempestade em alto mar?
Delfim Netto: Naquele momento produzir álcool como um substituto da gasolina e do diesel era algo extremamente importante, e foi o que aconteceu com o Brasil. O CTA (Centro Técnico Aeroespacial, localizado em São José dos Campos-SP) havia desenvolvido um motor a álcool bastante eficiente. Ogeneral Geisel, que depois virou presidente, havia se entusiasmado com isso, e então se criou um primeiro programa, muito embora antes haviam sido criadosoutros, mas não tão amplos, em decorrência de um certo comodismo causado por preços convidativos do petróleo no mercado internacional. Diante desse cenário nasceu o Pró-Álcool.
Revista Canavieiros: Como foram as movimentações seguintes à implantação do programa?
Delfim Netto: No Governo Figueiredo o programa foi estabilizado, o álcool provou que era o único substituto líquido para gerar energia para o transporte, provou sua eficiência.
Com isso se criou todo um sistema. O Brasil é o único país do mundo que distribui universalmente o etanol, sem falar na tecnologia flex, a cogeração de energia e mais um monte de coisas que ainda virão. É um programa de muito sucesso na minha opinião.
Revista Canavieiros: E as crises?
Delfim Netto: Foi incentivado ao setor privado investir uma brutalidade. Eu acredito que tenha sido algo em torno de US$ 15 bilhões que o setorinvestiu acreditando no Governo, quando em 84-85, já com o Sarney, o preço do petróleo desabou.OGoverno fingiu que não era com ele e deixou o setor a sua própria sorte.
A segunda foi muito mais grave, nos Governos Dilma e Lula.O setor sucroenergético não foi somente abandonado, mas quase que destruído, foi eliminado uma quantidade enorme de patrimônios.
Revista Canavieiros: Então as duas crises, início da década de 90 e governos petistas, tiveram a mesma essência, dar as costas para o setor justamente quando ele apresentava índices altos de endividamento em decorrência de investimento em ganho de produção?
Delfim Netto: Foram iguais, pois nas duas aconteceu que o Governo prometeu e não cumpriu. ORenovabio é a primeira vez que ele (o governo) jura que vai tirar a mão do negócio, por isso eu tenho esperança. É um programa muito mais lógico eorganizado. A questão da venda dos créditos de carbono é um sistema que tem todas as condições para sobreviver, e liberar o setor da maldição do Governo.
Revista Canavieiros: Qual o seu ponto de vista sobre o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool). Ele cumpriu o papel a que foi criado?
Delfim Netto: O IAA terminou no Governo Collor, aliás tudo aquilo era um sistema corporativista, construído na ditadura do Getúlio Vargas, tinha que mudar mesmo, não terminou somente esse instituto, terminaram todos. Ele não fez falta, já tinha que ter acabado antes.
Eu vou dizer uma coisa do movimento alcooleiro. No início, a participação do Governo era importante, até porque ele ajudou demais na pesquisa, mas tudo que é governamental se burocratiza, não tem nenhuma agênciapública que seja capaz de continuar a funcionar bem.
Revista Canavieiros: E sobre o petróleo, qual cenário futuro você projeta para ele?
Delfim Netto: Acho que o petróleo vai ter seu papel reduzido, provavelmente vai ficar na indústria química.É um gerador de energia para a economia que compromete demais o meioambiente de forma que deve ser usado com muita moderação.
Como combustível ele vai ter o mesmo fim do carvão, porém é muito eficiente, riquíssimo. Quando você separa os seus componentes é uma coisa impressionante.Tem a questão das outras energias, que estão ganhando muita eficiência, hoje praticamente você compete com o petróleo de maneira muito parecida, na eólica, solar e em todos os tipos de energia renovável, são substitutos que geram pouquíssimos gases do efeito estufa.
Revista Canavieiros: Qual a importância do etanol no desenvolvimento do interior do estado de São Paulo?
Delfim Netto: O etanol é algo que vai muito além do ponto de vista da produção, primeiro a questão tecnológica e dou como exemploa evolução através da colheita mecânica.Depois vem a questão social, onde ele elevou o padrão de vida do interior de maneira significativa.
Todos esses avanços acabaram ficando um pouco defasados, prova disso é que hoje temos que importar etanol dos EUA.
Revista Canavieiros: Como você vê o seu relacionamento com o setor sucroenergético?
Delfim Netto: Sempre tive uma relação muito boa com a Copersucar e com os líderes do setor. Enquanto estava no Governo, estimulamos a produção de etanol, eu acho que dificilmente vai se apontar ao longo desse período qualquer medida que não tivesse sido de apoio.
Agora é preciso levar em consideração que é um setor difícil, complicado, e que foi construído aos poucos. Isso se deve até porque não existe outro país do mundo que tenha um combustível alternativo à gasolina tão evoluído. Se osGovernos não tivessem sido muito inconstantes e volúveis, ou seja, cada vez que havia uma dificuldade séria de importação o Governo dava ênfase à produção de etanol, cada vez que o preço do petróleo abaixava ele era esquecido, já teria atingido patamares mais elevados. Acabar com isso é a maior vantagem do Renovabio.
Revista Canavieiros: E o futuro do Etanol?
Delfim Netto: Você vai ter uma química do álcool desenvolvida do mesmo jeito que está a química do petróleo. Nós estamos só começando a ter conhecimento do que podemos fazer com essa coisa maravilhosa que se chama biocombustível, que é o transformador direto de luz em energia. Estamos só aprendendo.Essa crise trouxe alguns atrasos nos projetos que estavam em desenvolvimento, é preciso voltar os olhos novamente para a pesquisa.
Revista Canavieiros: Ao deixar o Ministério da Fazenda, em 1974, pouco tempo depois o senhor se tornou embaixador do Brasil na França, justamente no período que estava iniciando o Pró-Álcool. Qual era a visão dos europeus sobre o programa brasileiro?
Delfim Netto: Ninguém levava a sério o etanol, a não ser o Brasil.É uma pena que não tivemos um crescimento constante. Se você olhar aparece uma curva crescente, com interrupções muito profundas, o que prejudicou demais a confiabilidade do biocombustível perante o mundo.
Revista Canavieiros: Como o senhor enxerga a posição do Henrique Meirelles contrário ao Renovabio, no qual ele o caracterizava como um programa inflacionário?
Delfim Netto: Isso é conversa mole para boi dormir. A fazenda tem uma tendência a transformar ideologia em ciência. Na verdade, eu fiquei surpreso que ela não tivesse entendido que o Renovabio está exatamente na direção correta, que é a de tirar o Governo do negócio. Não tem como prosperar em atividades que o Governo é importante, isso porque sempre termina em corrupção ou em algo pior.
Revista Canavieiros: Então é certo dizer que o Renovabio dará ao setor a possiblidade de ser uma das cadeias mais liberais da nossa economia? Mais livre do Governo?
Delfim Netto: O etanol depende do Governo porque tem uma relação fixa de preços entre ele e a gasolina. Mas agora encontramos um mecanismo que o mercado vai produzir isso, que vai se autofinanciar através da venda de bônus de carbono. Com certeza a implementação do Renovabio deixará o setor livre, não terá mais essa dependência dos preços internacionais do petróleo ou de políticas que maquiavam o seu valor.
Revista Canavieiros: Você vê o agronegócio brasileiro descolado do país em relação ao seu grau de desenvolvimento?
Delfim Netto: Do ponto de vista da agricultura, o Brasil é um país hiperdesenvolvido. Na verdade, a Embrapa cumpriu o seu papel, foi criada em 72-73 para desenvolver algo que não existia, que é obter resultados agronômicos em um clima tropical.O velho professor Eugênio Gudin dizia para todo mundo, “copiar a indústria é fácil, eu trago a máquina e faço a produção, agora copiar a agricultura tropical não existe, não tem de quem copiar”.Então a Embrapa nasceu para criar isso e é até hoje um grande sucesso.Infelizmente agora está envolvida em um problema de entropia, que é natural em todas as empresas do Governo, onde em algum momento ela passa a convergir para a desorganização.
Revista Canavieiros: Fale um pouco mais da sua visão sobre a Embrapa?
Delfim Netto: A Embrapa não é um instituto de pesquisa puro, ela trabalha no desenvolvimento de uma ciência aplicada. E fez coisas fantásticas, no fundo a Embrapa ajudou a desenvolver o maior passivo que o Brasil tinha, que era o Cerrado e graças a pesquisa conseguiu transformar ele no maior ativo brasileiro.É muito significativa. É uma pena quese encontra nessa situação devido a problemas de orçamento.
Revista Canavieiros: Como você vê o grau de desenvolvimento das empresas do setor que conseguiram se manter em pé com a crise?
Delfim Netto: A vinda de grupos internacionais certamente ajudou. As empresas que sobreviveram têm alta tecnologia, não só a tecnologia agrícola, mas também a administrativa. A atividade que produz açúcar e álcool é cheia de detalhese truquesque foram ajustados e então nasceu uma técnica de administrar as usinas, não só do ponto de vista tecnológico, de ter a melhor semente, de ter osmais eficazes fertilizantes, mas o aproveitamento do tempocresceu demais.Hoje posso afirmar que é uma administração científica.
Revista Canavieiros: Qual será o futuro do mercado de açúcar?
Delfim Netto: Acredito que sempre vai oscilar, quem vai dizer se vai produzir açúcar ou etanolsão os preços. Se tiver uma forte demanda de açúcar, provavelmente será usada uma quantidade maior de recursos para a sua produção, se as coisas forem diferentes vai se produzir mais etanol, como já é hoje. No entanto, é preciso considerar um fato novo que vai mudar bastante essa relação, isso vai acontecer quando o Renovabio estiver funcionando.