A pecuária brasileira vive os últimos capítulos de um árduo trabalho contra uma das mais complexas enfermidades que atingem diversas criações. Além de sua gravidade, a febre aftosa, em caso de surto generalizado, pode causar o fechamento completo do mercado internacional de um país, além do abate sanitário de um número incalculável de animais.
Chegar até o status de livre da aftosa sem vacinação significa melhores condições comerciais e redução de custo. Por outro lado, todos os envolvidos na cadeia precisam elevar o rigor na circulação dos animais e também no preparo das ações necessárias em caso de surto. É o que Emílio Salani, uma das principais lideranças da indústria de saúde animal, alerta ao longo da entrevista, que ainda esclarece toda conjuntura nesse momento de transição entre os tempos de proteção para a época da liberdade, que como todas precisa ser controlada, para não ser perdida.
Revista Canavieiros: Quais são os estados ou regiões do país que já estão ou estarão em breve liberados da vacinação contra a aftosa?
Emílio Salani: Hoje existem cinco estados livres de aftosa sem vacinação, são eles: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rondônia e Acre, lembrando que tem um pedaço do Amazonas, conhecido como “Boca do Acre”, e uma parte do Mato Grosso, que pelo fato da cadeia estar ligada aos dois estados do Norte, também estão com o mesmo status. Caso se confirme a tendência de parte bloco IV (divisão feita pelo Ministério da Agricultura) interromper a vacinação de maneira completa, o que depende da certificação da OIE (Organização Mundial da Saúde Animal), o país terá um total de 16 federações sem vacinação, que são as já citadas mais Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Distrito Federal).
Revista Canavieiros: O que significa estar livre da vacinação contra a aftosa no âmbito comercial?
Salani: Existem vertentes que insistem que a suspenção da vacinação permite você disponibilizar sua proteína, seja branca ou vermelha, em qualquer país sem essa restrição sanitária, o que não significa necessariamente facilidade nas negociações que se dão após a confirmação do status de livre sem vacinação. Vamos pegar como exemplo o Paraná, que não vacina. O que se observa é um trabalho que deve durar cerca de quatro anos com os clientes para que se verifique, valide, audite e permita a exportação de proteínas para qualquer país. Por outro lado, um país como o Uruguai, que tem por volta de 12 milhões de bovinos, usa vacina brasileira, tem o status de livre com vacinação e não pretende, pelo menos por agora, interrompê-la, consegue o acesso livre a todos os mercados, pelo fato, segundo alguns especialistas, de comprovarem a rastreabilidade de seu rebanho. Ainda, recentemente, o México autorizou a entrada de carne da Argentina que também possui o status de livre da aftosa com vacinação, similar à maioria dos estados do Brasil.
Revista Canavieiros: Nesse contexto, é correta a análise de que vacinar ou não está perdendo sua relevância no mercado internacional?
Salani: Estar livre de aftosa sem vacinação oportuniza comercialmente a proteína produzida, ou seja, nem todos os países aceitam você exportar para ele carne de estados que estão livres de aftosa com vacinação, isso tudo porque há uma suspeita de que a vacinação em massa, em campanhas como acontecem no Brasil, pode mascarar uma disseminação viral, o que cientificamente é discutível. Então é importante, se o país quer ser um player exportador de carne sem essa barreira sanitária, que ele tem que trabalhar no sentido de conseguir o status de livre de aftosa sem vacinação.
Revista Canavieiros: Qual o posicionamento da indústria veterinária sobre o tema?
Salani: A indústria veterinária sempre apoiou o Ministério da Agricultura, o produtor e todas as autoridades envolvidas no programa nacional de erradicação da Aftosa, em primeiro lugar na busca do status de livre com vacinação e agora livre sem vacinação. Sempre trabalhamos muito forte para atender à demanda de milhões de doses demandadas pelo Ministério da Agricultura antecipadamente em um ano, pois o tempo de preparo é de nove meses considerando os processos de produção e controle. Entretanto, a indústria, em todas as oportunidades que tem, deixa claro que é importante o rigor em todas as medidas de segurança antes de se tomar a decisão de se substituir a vacinação, pois elas passam a ser as ferramentas de proteção. Então, ao retirar a vacina, toda a cadeia de produção da carne precisa estar consciente do aumento da vigilância, principalmente nas fronteiras, para se evitar o reingresso da enfermidade no nosso país.
Revista Canavieiros: Porque Minas Gerais vai substituir a vacinação por medidas de segurança em 2023 e São Paulo não?
Salani: No caso paulista, o que está em debate é a questão do fundo de indenização, fundamental, pois em caso da volta da febre aftosa e for decidido pelo abate sanitário em massa, os pecuaristas precisam de uma segurança financeira. Outro tema pendente é quanto ao banco de antígenos e vacinas. É válido ressaltar que os dois assuntos estão sendo configurados na Câmara de Carne Paulista, que envolve autoridades da Secretária de Agricultura e Abastecimento e associações ligadas à cadeia produtiva.
Revista Canavieiros: Então há risco de São Paulo ter que continuar vacinando ao longo de 2024, 2025?
Salani: É muito complicado fazer juízo de valor sem participar diretamente dos debates que estão na busca de equalizar esses pontos pendentes. Assim, eu não posso responder se São Paulo terá êxito na suspenção de vacinação após 2023. O que eu posso dizer é que, segundo o Ministério da Agricultura, o estado vacinará no ano que vem.
Revista Canavieiros: No caso dos pecuaristas, que a partir do ano que vem não vão vacinar mais, quais mudanças eles terão na lida para implementar os procedimentos de segurança?
Salani: O país tem uma dívida grande com todo o processo de erradicação da febre aftosa, tanto quanto na questão do senso do rebanho, como na área sanitária, onde a maioria dos criadores passaram a adotar os meses de vacinação para fazer as demais intervenções, como de vermífugo, raiva, carrapaticida, entre outros. Após a suspensão da vacinação, eu acredito que todo produtor tem que estar engajado na observação do rebanho, de sintomatologia, das fronteiras com outros países que para que se iniba o ingresso de animais de zonas que possuam o vírus para a nossa que está livre, tanto que você tem escalas de preocupações distintas entre estados que estão na fronteira, como os dois Mato Grosso, e os estados da região Sul, com outros que estão localizados no centro do pais.
Revista Canavieiros: Ou seja, as barreiras sanitárias ganharão muita relevância nessa nova fase?
Salani: Eu entendo que as autoridades terão que ter o suporte dos criadores para que possam manter a vigilância epidemiológica, principalmente no sentido de evitar que entrem no país animais que possam carregar o vírus. Essa é a grande preocupação. Eu enxergo que para termos sucesso é preciso implementar um complexo trabalho que envolva barreiras 24 horas por dia, fiscalizações volantes, enfim, ações conjuntas do pessoal do Ministério da Agricultura, das agências executoras, dos estados e dos poderes policiais.
Revista Canavieiros: E se surgir foco da doença?
Salani: Aí entra a importância do banco de antígeno e vacinas para que se a doença reingressar, se faça o abate sanitário na região do foco e uma vacinação perifocal, ou seja, ao redor de 25 km de diâmetro. Isso para conter a disseminação do vírus e mostrar eficiência para as autoridades internacionais restaurarem a certificação de livre sem vacinação. Com as modificações feitas pela WHO (Organização Mundial da Saúde) ficou um pouco mais simples o resgate do status de livre sem vacinação, caso aconteça o reingresso da doença. Só que a rapidez e a eficiência no diagnóstico e acesso à vacina precisam ser muito organizadas para evitar que a febre se espalhe.
Revista Canavieiros: Além da volta de casos da doença, há outra forma, relacionada por posicionamentos políticos ou pressões de mercado, que faça os estados brasileiros regredirem do status de livre de aftosa sem vacinação?
Salani: Não vejo, do meu ponto de vista, nada que possa retroagir, exceto o reingresso da enfermidade no país. Porém devemos considerar que se trata de uma política de estado, e isso faz com que dependemos do empenho das autoridades em manter o Brasil livre de aftosa sem vacinação.