Confira a entrevista com o gerente de bioeletricidade da Unica, Zilmar de Souza

06/10/2022 Noticias POR: MARINO GUERRA

Em 2022, a contribuição da cana-de-açúcar para a segurança da matriz elétrica nacional completa 35 anos. Nesse caminho, ela conquistou o protagonismo de ser a principal fonte renovável com o atributo de ter seu pico de geração justamente nos períodos mais críticos de estiagem, quando os reservatórios das hidrelétricas vivem o seu maior grau de stress. Feito magnífico, porém pequeno, se comparado com as oportunidades. Num mundo cada vez menos fóssil e mais elétrico, a concretização de diversas rotas, que estão em estágio avançados de desenvolvimento e/ou implementação, irá transformar as usinas e destilarias de hoje em biorrefinarias, pois produzirá eletricidade vinda de diversas fontes renováveis (biomassa, etanol, biogás, biometano e hidrogênio verde). Na conversa com uma das maiores referências no assunto, o gerente de bioeletricidade da Unica, Zilmar de Souza, foi detalhado o cenário presente e futuro da atividade, inclusive a definição dos primeiros passos de uma política pública que dê maior previsibilidade aos investimentos, para enfim deixar de ser considerado uma terceira atividade e assumir a mesma fama (relevância), ou até mesmo maior, do açúcar e do etanol.

Revista Canavieiros: A exportação de energia gerada em usinas para a rede comemora 35 anos. Há mais motivos para comemoração ou lamentações?

Zilmar de Souza: Quando tudo começou eu tinha 17 anos e já trabalhava na CPFL, lembro que a primeira usina a exportar foi a São Francisco (Grupo Balbo, localizada em Sertãozinho), em seguida vieram a São Martinho e a Vale do Rosário. Na época falávamos em quilowatts hora e hoje já usamos terawatts hora, com mais de 200 usinas exportando energia elétrica para a rede, ou seja, precisamos reconhecer todo o esforço do setor, que enfrentou tempos de sérias crises, para ter a importância que tem dentro da matriz energética brasileira hoje.

Revista Canavieiros: O senhor falou em crises. Com o foco somente na bioeletricidade, quais foram as maiores barreiras nessas três décadas e meia de caminhada?

Zilmar: Desde o começo, o esforço dos pioneiros junto com a concessionária local, o BNDES e o antigo DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica) que se transformou na ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), foi muito grande para superar uma barreira que perdura até hoje, que é a da regulamentação. Imagina nas décadas finais do século passado, com as hidrelétricas respondendo por quase 90% da matriz, tentar adaptar para a biomassa da cana uma regulamentação que só tinha olhos para uma fonte. Mesmo com toda a relevância do setor hoje, não temos um texto que dê segurança para o desenvolvimento de uma política setorial dedicada à biomassa que contemple questões como contratação, financiamento e política tributária.

Revista Canavieiros: Esse seria o grande ato do próximo governo em favor dessa fonte de energia limpa?

Zilmar: Nossa pauta contempla cinco pontos, o primeiro é a instituição de uma política pública específica com mecanismos tanto no mercado regulado como no livre, que valorize os atributos da bioeletricidade e do biogás que tornam o negócio diferenciado. Temos o atributo locacional, estamos próximos dos grandes centros consumidores, e o de confiabilidade, pois geramos de modo constante, entre abril e novembro, sem a oscilação das outras fontes como a eólica ou a fotovoltaica. Há o aspecto econômico, e cito a questão da indexação de preço, o qual o contrato do biogás tem como referência a inflação, enquanto o gás natural faz parte das fontes impactadas pelo dólar e o preço de uma cesta de combustíveis internacionais. E o social, a cada megawatt investido em biomassa do setor sucroenergético são gerados 22 empregos a mais que o gás natural. Esse seria somente o primeiro item para ser tratado, o segundo é continuar fortalecendo o mercado livre, porque boa parte da nossa geração é vendida nesse mercado. O terceiro ponto é nossa forte complementariedade com a fonte hídrica, o que demanda a promoção de contratação em leilões com o objetivo de preservar os níveis dos reservatórios. Quarto, a questão que vem desde 1987, que é a dificuldade de conexão com a rede elétrica. Recentemente, a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) divulgou um estudo que mostra que para cada R$ 1 investido para se conectar à rede na geração eólica, a biomassa precisa desembolsar R$ 1,5, é preciso acertar essa diferença. E o último é a visão integrada no planejamento setorial de portfólio, porque a biomassa é irmã do etanol, que é irmão do biogás, então se você quer ter uma política setorial abrangente, um planejamento de longo prazo adequado, não pode pensar só no etanol ou na biomassa, tem que pensar no todo.

Revista Canavieiros: Qual é o tamanho do parque de geração hoje?

Zilmar: Atualmente, o Brasil tem instalada uma capacidade de 187 mil megawatts, a biomassa como um todo respondeu por 16,8 mil megawatts, ou seja, 9% da matriz energética em termos de potência. Só a cana tem 12 mil megawatts, ou seja, 72% da potência outorgada da biomassa em geral e quase 7% da matriz elétrica brasileira. Considerando o dado de autoconsumo de 2021, que acabou de sair, nós produzimos 34.326 gigawatts hora, sendo 20 mil exportados para a rede e 14 mil utilizados nas unidades industriais.

Revista Canavieiros: Nesse cenário, o senhor acredita no aumento desse percentual dentro da matriz e qual o teto que
podemos chegar?

Zilmar: Com base nos projetos cadastrados na ANEEL, onde são cadastrados turbogeradores, e já dito anteriormente, temos 12 mil megawatts instalados e, até 2024, devemos ter uma média de crescimento de 580 megawatts por ano considerando todas as biomassas. Até agosto de 2022, já acrescentamos 576 megawatts e vamos acrescentar, até dezembro, 323 megawatts, totalizando 899 megawatts; em 2023 serão 248, e em 2024 serão mais 591. Um percentual de crescimento de algo em torno de 5% ao ano. Isso não deve mudar muito no consolidado até o final da década, é obvio que o biogás tende a ter um crescimento relativo maior, mas nada que altere muito esse cenário, somente se houver alguma política setorial mais estimulante e dedicada.

Revista Canavieiros: Como o senhor enxerga a divisão dos investimentos entre a forma de geração com o bagaço e o biogás?

Zilmar: E u e ntendo q ue a b iomassa s ólida a inda t em muito a se desenvolver, porque não é apenas o bagaço, há forte expectativa para o surgimento de soluções que darão competitividade para a palha. Lógico que pelo seu poder colorífico, o biogás é o melhor dos mundos, mas ele não pode ser visto como uma rota concorrente, até porque ele será a chave que vai viabilizar projetos em usinas que ainda não exportam para a rede, ou que estão com a produção defasada em relação ao seu potencial. Biogás pode estimular o aproveitamento do bagaço e da palha na geração de energia elétrica, num efeito sinérgico interessante. Outra questão é que, se concretizada a expectativa de aumento dos mercados de açúcar e etanol, será necessária mais cana e consequentemente teremos mais bagaço e palha para destinarmos às caldeiras.

Revista Canavieiros: Pensando no nível tecnológico instalado nos parques industriais, acrescentando as usinas que não cogeram, há muito para se crescer?

Zilmar: Do total instalado, 60% das usinas já exportam, ou seja, ainda temos 40% de usinas de pura zona de oportunidade. Além disso, dentro do grupo dos cogeradores, ainda temos muito potencial dormente, porque há usinas que não fizeram plenamente o retrofit, ou seja, a reforma não foi completa, o que dá margens para evolução na eficiência.

Revista Canavieiros: E qual serão as fontes de investimentos que atenderão toda essa demanda?

Zilmar: Sempre fomos um setor que usa recursos privados, lógico que fontes públicas como o BNDES são relevantes, mas é um setor que está num processo contínuo de evolução o que atrai capital externo e fundos de investimentos de todas as partes do mundo.

Revista Canavieiros: Começa a ganhar volume projetos de produção de biogás produzidos através da biodigestão da vinhaça, porém a expectativa é que grande parte dessa energia seja destinada para a substituição do uso do diesel com a produção do biometano. O senhor já consegue enxergar um percentual de quanto sobrará para a produção de energia?

Zilmar: Não temos esse levantamento e confesso que enxergo um cenário ótimo, porque mostra como esse setor é capaz de dar passos adiante quando todos acham que ele está próximo da fronteira tecnológica. Temos essa oportunidade de trabalhar na rota do biogás, e gerar energia elétrica, ou na rota do biometano, que abre a possibilidade de distribuição pelos gasodutos, virar combustível para tratores e caminhões ou ainda ser comercializado de forma comprimida. O importante é que tenhamos a biomassa, ou seja, o bagaço, a palha, a vinhaça e a torta de filtro. A usina passa cada vez mais a ser uma biorrefinaria e quem vai analisar o setor para investimentos, verá um amplo portfólio, ou seja, ele não terá apenas o açúcar e o etanol, mas um leque de negócios, o que torna os projetos muito mais atrativos.

Revista Canavieiros: Outro segmento que vem ganhando relevância é o hidrogênio verde. Pensando na bioeletricidade, qual será a sua função?

Zilmar: Na energia elétrica, a expectativa é que o hidrogênio, o verde, advindo do etanol, do biogás e até mesmo do bagaço/energia, se torne competitivo em relação ao hidrogênio não renovável (cinza), hoje ele não é, e quando isso acontecer com certeza vai atingir escala global. No momento não aproveitamos o potencial das biomassas para a produção de hidrogênio e elas precisam ser consideradas pois são fundamentais para a virada dessa chave.

Revista Canavieiros: Considerando todas essas rotas, qual o potencial de geração do setor?

Zilmar: Se pegar os dados da última safra, aproveitamos 15% do nosso potencial, algo em torno de 20 mil gigawatts hora, com o que temos de concreto podemos produzir sete vezes mais, então se multiplicarmos os 4% que representamos do consumo nacional em 2021, chegamos a 28% da matriz de consumo nacional, só aproveitando plenamente a palha, o bagaço e o biogás, sem precisar plantar um pé de cana a mais e ainda como base numa safra que quebrou a produção em razão do clima. Esses números deixam evidente a grande reserva estratégica energética dormente nos canaviais para atender não somente à demanda brasileira, mas a mundial, caso o hidrogênio verde prospere.

Revista Canavieiros: Enxergo que a humanidade vive um grande paradoxo energético, por um lado é viabilizada uma infinidade de fontes de energia limpa, mas ao mesmo tempo um período de estiagem no Brasil ou até mesmo o conflito entre a Rússia e a Ucrânia já coloca em risco o abastecimento de cidades, regiões, países e, até mesmo, continentes. Como o senhor vê essa situação?

Zilmar: No ano passado nós poupamos 15% da energia total armazenada em forma de água nos reservatórios das hidrelétricas do sudeste e centro-oeste do país. Uso essa informação para contextualizar o quinto item da proposta de política setorial que fizemos, o qual vou ler na íntegra: “estabelecer nos instrumentos de planejamento setorial uma visão estruturante e integrada da bioeletricidade com os demais produtos da cana-de-açúcar na matriz de energia do país”. Perante tudo o que foi dito nessa entrevista, não dá para corrermos o risco de vir mais um período de escassez hídrica e o país endividar a sua população em vários bilhões, acionando termelétricas caras e poluidoras, como aconteceu em 21, conta que será paga nos próximos anos. Então, para que essa exposição não se repita, precisa aproveitar o imenso potencial da biomassa através de um planejamento integrado que não vai impedir a repetição de novos longos períodos de estiagem, mas sua consolidação significa um backup que pode evitar outras crises e riscos de apagões. Os países da Europa são mais frágeis por não terem esse potencial adormecido em energia renovável, assim eles não têm muitas escolhas e representam um mercado altamente atrativo. Aqui, essa é uma decisão que precisa ser feita agora, porque não é possível tirar um empreendimento do papel de um ano para o outro, a tarefa não é simples, mas é possível.


Planta de biogás da unidade Cruz Alta da Tereos