Construtora de respeito

07/05/2024 Noticias POR: Marino Guerra

Com muita coragem, persistência e trabalho, produtora é referência por ser precursora no campo e o fato de ser mulher é apenas uma das conquistas.

“Eu estava em busca de algo que representasse a mulher no ambiente de produção, hoje vemos muitos bonés, camisetas, eventos para mulheres, mas sempre senti que faltava um símbolo que representava que aquela roça era tocada por uma mulher” (Anna Paula Nunes)

É quase uma regra do jornalismo identificar uma mulher pioneira em alguma atividade como “a primeira”. Amelia Mary Earhart (1897-1937) foi a primeira mulher a voar sozinha sobre o Oceano Atlântico; ou então num recorte regional, VictorinaGuidi (1924-2017) e DozolinaZequimVanzella (1922-2016) foram as primeiras mulheres a se cooperarem na Copercana, únicas presentes, dentre um total de 99 “lavradores” (como eram denominados os produtores rurais na época), em sua fundação, realizada no dia 19 de maio de 1963.

Nada mais que justo manter vivos os nomes das pioneiras nas mais variadas áreas, contudo quando a história não é contada da maneira correta, corre-se o risco de deixar no esquecimento uma boa parte dela, isso porque como ser precursor é um traço de personalidade, com certeza ao longo de sua vida ela realizou muitos outros feitos, talvez de menor expressão, mas que, se reunidos, deixa o quadro de suas memórias muito mais bonito.

Como é o caso da produtora Anna Paula Nunes, que se fosse necessário definir sua trajetória no agro com o termo “a primeira”, mediante tantas iniciativas, seria como a primeira a construir o respeito pelas mulheres na agricultura de sua região (Araraquara-SP).

Representante da quarta geração de uma propriedade localizada em Boa Esperança do Sul-SP, ela conta que nasceu na fazenda e passou toda vida nela: “Desde pequena o que eu mais gostava era ficar atrás do meu pai, ir para a roça com ele, eu nasci no agro e sempre tive a certeza que aqui é o meu lugar”.

Lógico que a paixão da infância se transformou em profissão da vida adulta, contudo antes de superar o primeiro obstáculo e ser a primeira mulher da família no comando da propriedade, foi necessária muita luta e persistência.

“Sempre trabalhei junto com o meu pai, até que ele foi se afastando e eu fiquei à frente da operação, porém nessa época, por volta da virada do século, era muito difícil uma mulher liderar uma propriedade rural.

Meus desafios começaram dentro de casa, com minha família, porque eles achavam que estar na fazenda não era o melhor lugar pra mim. Meu pai sabia que eu tinha o conhecimento, que eu era capaz de tocar, que eu gostava do trabalho, mas ele achava que o ambiente não era pra mim, então para continuar eu tive que mostrar que era forte”.

Logo que assumiu as rédeas, a própria deusa Ceres tratou de testar a capacidade da nova fazendeira: “Meu avô e pai gostavam muito de trabalhar com laranja, porém quando o greening se alastrou, nossos pomares estavam bem velhos, o que nos obrigou a arrancá-los, transformando um bom pedaço da fazenda em canavial, porém reservei uma área para iniciar um trabalho com grãos, que era um grande sonho meu”.

Anna conta que nessa época ninguém sequer ventilava a possibilidade de ter uma lavoura comercial de grãos na região, então, ao formar o primeiro milharal, se tornou a primeira das redondezas a encarar o desafio de trabalhar com culturas perenes, que demandam intervenções rápidas num local que era carente até mesmo de assistência técnica especializada.

“Me lembro que os transgênicos começaram a surgir apenas dois anos depois que iniciei a atividade, já comecei aplicando o conceito de plantio direto, pois montava a lavoura de milho no verão e fazia alguma cultura de cobertura para não deixar a terra nua no restante do ano.

Não foi um início tranquilo, em primeiro lugar tive que fazer um trabalho muito grande para que os meus funcionários confiassem em mim. Nessa época eu era a filha do patrão que chegou com uma novidade, para ajudar, no primeiro ano o resultado foi péssimo, deu tudo errado, não colhi o suficiente para pagar as contas.

Muita gente, inclusive os funcionários, veio me falar para desistir daquilo, que não era uma região graneleira, que o melhor era mudar para a cana, mas persisti e fui atrás de conhecimento no Paraná, fui à Embrapa Grãos e, conforme ia vencendo os desafios de cada dia, eles percebiam minha determinação e fui ganhando respeito, que acredito que tenha sido consolidado a partir da segunda safra, quando a produção foi bem melhor”.

Contudo, como a maior virtude dos desbravadores é a inquietude, as novidades não pararam por aí: “Logo em seguida percebi que precisava trabalhar com uma cultura que me desse retorno financeiro na safrinha e a lógica era entrar com a soja no verão e passar o milho para a segunda temporada, porém se a região era fraca no milho, na soja era pior ainda, a única coisa que tinha era a Ceagesp (Companhia de Entreposto e Armazéns Gerais de São Paulo) de Araraquara que recebia a safra. Mesmo assim decidi experimentar e no primeiro ano trabalhei com a soja em metade da área, no segundo já havia feito toda a troca, de longe é a cultura que tenho maior paixão”.

Girassol

Trabalhando com uma área própria de grãos de 350 hectares, Anna faz um sistema de rotação de culturas na safrinha, dividindo entre o milho, o sorgo e o seu quarto título de “desbravadora agrícola”: “Comecei com o Girassol para ter mais uma alternativa na segunda safra, gostei da cultura e até hoje eu sou a única grande produtora cultivando numa área média de 150 hectares”.

Cultivando o Girassol em um sistema de rotação de segunda safra com milho e sorgo, Anna é a única da região a trabalhar com áreas acima dos 150 hectares

A produtora comenta que só pela beleza já vale a pena o esforço, mas que também é interessante por se tratar de uma lavoura que demanda investimentos bem baixos por ser uma planta bastante rústica: “Quando chove bem, ela fica mais bonita, seu miolo, onde ficam as sementes, fica maior e ele produz mais, mas por mais severas que sejam as condições climáticas, faz sete anos que eu planto e nunca perdi uma safra, em alguns anos colhi 800 quilos, mas nos bons, colho duas toneladas por hectare”.

Sobre o manejo, ela diz que é bem tranqüilo, já que o maquinário é o mesmo utilizado na soja e milho e com duas aplicações, uma de inseticida e outra de fungicida, ela elimina qualquer problema com pragas e doenças. Como faz o plantio direto em solos ricos de matéria orgânica, não é necessário adubar.

O maior ponto de atenção da cultura acaba sendo o mercado: “Minha estratégia com o girassol é realizar um plantio tardio, executando lá pelo mês de maio, pois como o mercado comprador é bem restrito, eu preciso colher numa época que as ofertas de soja e sorgo já estejam baixas para as esmagadoras que produzem óleo e também grande parte da produção da região já foi entregue para o mercado de nutrição de pássaros, assim, colhendo na porta do plantio da soja, consigo um preço um pouco maior”, explicou a produtora.

Soja

“A agricultura é uma atividade muito dura porque nós não podemos parar, quando levamos o tombo de uma quebra de safra, como essa de soja, não há tempo para se lamentar, para analisar onde poderia ter feito diferente, é preciso entrar com as lavouras de safrinha e tocar o barco. Houve um plantio de soja que perdi em janeiro e, ao invés de fazer novamente, optei pelo milho”.

Com essa postura dinâmica, característica fundamental que fez do agro brasileiro a referência que é hoje, Anna Paula mantém 350 hectares destinados para grãos com o que há de melhor em termos de manejo, para se ter ideia, há 16 anos seguidos que é feito o plantio direto, tanto de safra como safrinha, de maneira ininterrupta.

“Nessa safra, na minha área de plantio direto, consegui colher uma média de 70 a 75 sacos por hectare, uma produtividade bem parecida com áreas de pivô aqui da região. Em anos bons, me aproximo dos 90 sacos, teve talhão que cheguei bem próxima de 100, que é o meu grande objetivo”, disse a produtora que ressaltou as virtudes do manejo que executa: “Esse foi o ano que as vantagens do plantio direto ficaram mais evidentes, se comparar com as áreas de reforma de cana que plantei, a diferença ficará superior a 30%”.

Claro que, como quando falamos em agricultura falamos em sistemas, não é uma técnica isolada que faz a diferença, como já dito, ela sempre trabalha com alguma cultura de cobertura quando não consegue fazer um plantio comercial, mas de jeito nenhum deixa o solo nu.

“Todos os anos faço análise de solo e mapeio os dados junto com os resultados das colheitas (primeira e segunda safra), assim eu consigo ver manchas que tiveram algum problema e encontrar e corrigir os fatores que desencadearam o resultado abaixo da média”, contou Nunes que ressaltou a importância em conhecer os detalhes de cada talhão.


Produtividade de pivô em área de sequeiro. Com sistema tendo como premissa o plantio direto, produtora mantém área graneleira extremamente bem manejada

“Aqui eu sei quais tipos de cultivares posso plantar, sei o histórico de adubação e com isso aplico de forma mais precisa. Tenho a acidez do solo controlada, então uso um calcário granulado que vem com o gesso e reage sem a necessidade de chuva, aliás, faz três anos que a análise não me pede correção, eu executo o manejo por causa dos nutrientes.

Também venho numa fase ascendente quanto ao uso de insumos biológicos, percebo que a saúde do meu solo melhora na mesma proporção. Como tenho um conhecimento profundo da área, sei onde posso fazer uma adubação organomineral com segurança e tenho desenhadas as manchas de nematóides, as quais executo o manejo no tempo certo”.

Áreas de reforma, arrendadas e abertura

Se o trabalho nos talhões graneleiros é realizado como se estivesse compondo uma ópera, quando se vai para a reforma de cana, o som se torna mais bruto, como um disco de heavy metal.

Essa é a percepção quando você vê Anna Paula falando sobre como estabelece sua lavoura de soja em sua área de grãos e como trabalha nas áreas de reforma: “As lavouras de reforma de cana eu encaro como uma guerra, em primeiro lugar você não sabe o que vai encontrar, qual a pressão de mato, se você não terá uma surpresa lá na frente pela fito do residual de um herbicida. Outro ponto é que por uma questão de calendário é muito raro conseguir fazer o plantio direto, pois a janela de plantio de cana é muito curta e o solo já precisa estar preparado”, comenta a produtora que dá uma importante dica perante sua experiência.

“Como o plantio de reforma é sempre uma incógnita, não se deve gastar muito, não dá para fazer grandes investimentos. Lógico que quando o clima ajuda, ele responde, em várias áreas já colhi mais de 70 sacos em anos bons, mas têm lugares que colho menos de 40. Não adianta ter um custo esperando colher acima de 80 sacos, tem que fazer mirando 40 sacos, se colher 60, a margem será maravilhosa”.

Ser mulher

“Quando produzi 96 sacos de soja em sequeiro em um hectare, a notícia correu rápido, então alguns dias depois eu recebi um telefonema de um produtor daqui da região perguntando como eu havia conseguido aquela produtividade, mas ele não queria saber do meu manejo, sua pergunta era em tom de desconfiança, queria saber se era mesmo aquilo.

Embora hoje esteja muito mais fácil, o agro ainda é um mundo muito masculino, cansei de ir em dias de campo onde só havia eu de mulher, aquilo me fazia sentir mal no começo, eu ficava no fundo, não conversava com ninguém, saía antes de acabar porque tinha vergonha, mas com o tempo fui ganhando confiança e hoje isso não me atrapalha mais, até porque eu consegui fazer uma história, no final tudo se trata de uma construção de respeito”.

Mesmo não se incomodando mais com o ambiente masculino, Anna Paula não parou com o seu trabalho de incentivar as mulheres a fazer parte do agro: “Eu vejo que temos muitas mulheres ligadas às atividades agropecuárias, que já atuam, mas que acabam ficando escondidas, com medo de aparecer. Meu desafio hoje é mostrar para elas que podem estar à frente de uma operação.

Falta um pouco de coragem para a mulher tomar a frente e essa coragem virá com exemplos, me esforço para elas saberem que, assim como eu consegui numa época muito mais difícil, elas também conseguirão.

Colhedora cor-de-rosa

Quem disse que o cor-de-rosa significa apenas romantismo, ternura, beleza e fragilidade. Lá pelas bandas de Araraquara, ela também remete à colheita de soja. Isso mesmo, não se espante em ver no meio de um mar palha uma máquina rosa realizando o serviço com a mesma capacidade de uma azul, verde, vermelha ou amarela.

A história começa, pela quinta vez, em sua trajetória no campo, com Anna sendo pioneira ao adquirir a primeira colhedora rosa de soja do país, o maior produtor mundial do grão.

“ Eu estava em busca de algo que representasse a mulher no ambiente de produção, hoje vemos muitos bonés, camisetas, eventos para mulheres, mas sempre senti que faltava um símbolo que representava que aquela roça era tocada por uma mulher.

Então numa feira vi um trator rosa, ele não estava à venda, era só para exposição, mas aquilo me fez pensar, porque não uma colhedora? Quando eu comecei a conversar com as pessoas sobre a minha ideia, via que elas não achavam muito legal, no entanto, quando encontrei o pessoal da New Holland, foi aceito o desafio.

Antes de chegar, fiquei aflita, com medo dela ficar num tom parecido com brinquedo de menina, mas quando a vi, o resultado ficou exatamente como imaginava, e tive a certeza que ela seria o símbolo que buscava.

Isso porque, com o passar do tempo, como tenho muitas áreas picadas e ainda presto serviço, a máquina fica rodando no caminhão prancha durante todo o período ou então quando a lavoura é ao lado de uma pista, percebo que ela chama a atenção das pessoas que estão dentro dos carros. O pessoal da New Holland também fala que a repercussão é fantástica, tanto que hoje há conversas para a produção de mais sete máquinas.

Tenho certeza que quando uma mulher está com medo de assumir a sua posição em alguma área, nem precisa ser somente no agro, e vê a colhedora, ela fortalece a sua coragem”.


Símbolo de que há uma mulher tocando a roça: “Tenho certeza que quando uma mulher está com medo de assumir a sua posição em alguma área, nem precisa ser somente no agro, e vê a colhedora, ela fortalece a sua coragem”

Cooperativismo

Recém-chegada ao quadro de cooperados da Copercana, a produtora demonstra desilusão com algumas cooperativas, que segundo ela perderam sua essência, principalmente na questão de atendimento, relacionamento e parceria.

“Algumas cooperativas que trabalhei perderam sua vocação, que é de atender às necessidades dos cooperados, não estou falando que ela tem que tomar prejuízo para atender nossas demandas, mas eu aprendi com meu pai que se o negócio é bom só para uma parte, ele é feito somente uma vez.

É preciso haver um diálogo onde os produtores se sintam confortáveis para abrir suas necessidades e a cooperativa ser sincera mostrando realmente como ela consegue contribuir. Quando essa cooperação acontece, a compra e a venda, ou a entrega de uma colheita, acabam fluindo de maneira natural”.

A história de Anna deixa claro que não se trata de ser mulher, nem da cor da máquina, isso são detalhes, o verdadeiro diferencial está na coragem de encarar um campo de obras para a construção de uma fortaleza intransponível formada apena