Cultura canavieira para todos

04/02/2019 Cana-de-Açúcar POR: Revista Canavieiros
Por: Diana Nascimento
 
Muitas pessoas têm a ideia de que museu é lugar de coisas velhas, empilhadas, com poeira e cheiro de mofo. Mas, ao contrário disso, museu é resgate, história e conhecimento.

No Brasil, a preocupação com o patrimônio industrial pode ser considerada muito recente, apesar de ter havido algumas ações nas décadas de 1970 e 1980, e também incipiente, havendo destruição de estruturas e reutilização equivocada de espaços, prejudicando aspectos importantes para a memória a ser preservada. 

O Museu da Cana, localizado em Pontal (SP), é um exemplo de esforço e resistência para que se mantenha a preservação de um patrimônio industrial para as gerações futuras e o seu valioso reconhecimento para a compreensão da história do desenvolvimento da indústria açucareira.

De acordo com Leila Heck, gestora do Museu da Cana, essa história começa com a formação do Engenho Central, também chamado de Usina Schmidt, construído  entre as cidades de Pontal e Sertãozinho, no estado de São Paulo.

A usina pertenceu ao alemão Francisco Schmidt, que chegou ao Brasil ainda criança e tornou-se um dos maiores fazendeiros de café da época.

Leila conta que a unidade começou a funcionar em 1906 e foi equipada com maquinaria escocesa do final dos anos de 1880.

No início de seu funcionamento, o ramal da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro que chegava a Sertãozinho foi prolongado até a fazenda vizinha, chamada Vassoural. A cana, da estação e das lavouras por perto, era levada de carroças até esse engenho, que chegou a contratar 100 operários e tinha espaços bem organizados para as atividades.

Na década de 1960, o Engenho Central - Usina Schmidt foi comprado pelo empresário Maurílio Biagi e desde então a Companhia Agro Industrial Engenho Central passou a ser base de apoio da Usina Santa Elisa, além de ter alguns períodos de produção de cachaça.

"Suas atividades cessaram em meados da década de 1980. Luiz Lacerda Biagi, filho de Maurílio Biagi, herdou a propriedade e preservou o patrimônio histórico formado pelas edificações e equipamentos, já com a intenção de implantar um museu. Em 2005, foi fundado o Instituto Cultural Engenho Central, associação civil sem fins lucrativos, para apoiar essa iniciativa", lembra Leila.

Sendo assim, a Fazenda Engenho Central, constituída por uma área de 12,9 hectares, foi cedida ao Instituto Cultural Engenho Central, atual mantenedor do Museu da Cana.

"Por meio de recursos vindos de projetos incentivados, e com o apoio de uma equipe técnica formada por museólogos, arquitetos, engenheiro e restauradores, foram concluídas as primeiras etapas de preservação e intervenções na fazenda, e o Museu da Cana foi aberto para visitação pública em 14 de dezembro de 2013", explica Leila.

Desde sua implantação, o Museu da Cana é mantido pelo programa de incentivo Cultural - Lei Rouanet, a qual possibilita que empresas ou pessoas destinem parte do imposto devido ao projeto cultural do museu. "Também criamos o programa Amigos do Museu da Cana, que permite às pessoas ou empresas doarem qualquer quantia numa conta institucional. Dessa maneira, nesses quase cinco anos de funcionamento, temos mantido a gratuidade para todos os visitantes, principalmente para o público de baixa renda, que nunca antes frequentou um museu", relata a gestora.

Importância para a comunidade 
Logo após a abertura do museu, a comunidade local e as cidades vizinhas passaram a ser seu público cativo. 

O Museu da Cana oferece visitas guiadas ao público espontâneo ou agendado, sempre de terças às sextas-feiras e, aos domingos, entre 10h e 16h. Nestas são trabalhadas questões relativas ao processo de produção do açúcar em consonância com os materiais gráficos dispostos em placas fixadas nas áreas de circulação para os visitantes e em folders em inglês, espanhol, português e braile. 

Ao longo do ano, o museu oferece eventos culturais especiais, como o Domingo Quintal do Museu com brincadeiras, pinturas e desenhos para crianças; Festa Junina (típica); Semana de Museus com palestras, exposições e atividades culturais para crianças (maio); férias no Museu (julho); Semana da Primavera  - que inclui em sua programação palestras, oficinas e festas folclóricas regionais, Festival de Música (ambos em setembro), Dia das Crianças e outros.

No entanto, os projetos que tiveram maior alcance cultural e histórico são os sociais, voltados para a história do trabalho e do trabalhador do Engenho Central. Esses projetos resultaram em atividades lúdicas para crianças, documentários, exposições e enriqueceu a programação cultural do museu, como as tradicionais festas de roça: Folia de Reis, Catira, Festa de São Gonçalo e a festa Junina, que há mais de 50 anos ocorre no Engenho Central.

O projeto "Colhendo Memórias" é um deles e surgiu pela necessidade dos museus contemporâneos em fidelizar seus públicos por meio de uma programação estimulante para novas visitas. "Para motivar as escolas do ensino fundamental a voltar a visitar o local com uma nova abordagem de seus acervos e conteúdos, pensamos em elaborar uma visita temática precedida de uma ação educativa em sala de aula e assim nasceu o Colhendo Memórias, que escolheu como seu tema fulcral a história do trabalhador da colheita da cana-de-açúcar", comenta Maria do Carmo Silva Esteves, produtora executiva do projeto.

O intuito é promover nas crianças o orgulho de pertencer ao ambiente rural, com sua rica cultura caipira, fruto da mistura cultural de diferentes povos e difundir o jeito de ser único das populações do nordeste paulista, onde a cultura da cana-de-açúcar é fundamental para entender este contexto.

Ainda sobre o Colhendo Memórias, várias equipes trabalham para a criação dos produtos culturais oferecidos pelo projeto, passando por historiadores, profissionais da área pedagógica, equipe de audiovisual, direção artística e uma equipe no Museu da Cana composta por nove pessoas que recebem os alunos durante as visitas.
Maria do Carmo conta que começou a lidar com essa temática nos anos 80, no ápice do movimento de trabalhadores rurais de Guariba por melhores condições de trabalho, atuando junto de Fernando Kassaxa, no Cineclube Cauim de Ribeirão Preto, na produção do vídeo "O Boia-Fria".

Desde aquela época ela se sensibilizou pela potência da cana-de-açúcar para a região não apenas pelo seu lado econômico, mas também por suas manifestações culturais. "Assim o projeto é fruto de uma pesquisa antiga e quando fui trabalhar junto da Leila, retomei o tema com força total, unindo minha experiência na área museológica com a rica temática da cultura nas terras da cana", afirmou Maria do Carmo.

Segundo a produtora, a partir da compreensão conceitual do projeto, sua aprovação pelo ProAc (Programa de Ação Cultural) e a parceria com a Biosev, o trabalho de produção, que contou com a ajuda de uma rede de profissionais de alto gabarito atuantes nas áreas do patrimônio e cultura, foi relativamente fácil e muito prazeroso de se realizar. "Quando estamos na apresentação do projeto para as escolas que visitam o Museu da Cana, vemos o potente papel da educação na formação do cidadão", confessa.
Cerca de 600 crianças da cidade de Pontal, estudantes do 4º ano, participaram do projeto Colhendo Memórias em 2018. Como o perfil do município é o de uma pequena cidade no interior de São Paulo onde o acesso dos estudantes e de escolas públicas às atividades extramuros escolares tem certa limitação, fica clara a função social do projeto em levar cultura.

"Identificamos que esta faixa etária de 9 anos tem muita receptividade para fazer florescer as sementes que queremos plantar com o projeto, relacionada ao orgulho de ser fruto de um ambiente rural - 'as Terras da Cana' -, por meio das linguagens artísticas do teatro, música e dança. Ao ver as crianças entrarem no ônibus depois de passarem um período escolar conosco no Museu da Cana, sentimos que acertamos mais no alvo do que esperávamos. Também nos surpreende como a arte bem aplicada tem o poder de formar cidadãos," destacou Maria do Carmo.

Neste ano, a ação será repetida em Pontal, mas a intenção será levar o projeto para as pequenas cidades localizadas na região do Museu da Cana.
De acordo com Leila, outras atividades podem ser realizadas nos espaços que abrigam o Museu da Cana, como, por exemplo, um polo de referência de educação, com a criação de escolas técnicas para formação de jovens da região.

Uma experiência piloto começou em 2017 quando, por meio de uma parceria com o Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), foram criadas duas salas de aulas para receberem os cursos "Jovem Aprendiz do Futuro" e "Jovem Agricultor do Futuro", ambos com duração de um ano e que visam capacitar meninos e meninas entre 14 a 18 anos, de baixa renda e da cidade de Pontal.

Nesses dois anos de experiência, 130 jovens foram despertados para um futuro profissional, seguindo outros cursos técnicos e universitários. Desses, 70 foram contratados com carteira assinada, outros cinco ingressaram no curso de Agronomia e Zootecnia na Unesp de Jaboticabal, o que implica em um resultado importante para a comunidade do município. "Esperamos que as empresas próximas ao Museu nos ajudem nesses esforços, e que venham ser parceiras para que juntos possamos dar continuidade a esses trabalhos de formação cultural e de educação aos nossos cidadãos", vislumbra Leila.

Parceria
A Biosev, como já comentado acima, apoia e patrocina o Museu da Cana desde sua fundação porque acredita na missão do museu de resgatar e preservar a memória da cana-de-açúcar que tanto influenciou a história da região e o desenvolvimento do Brasil.

"As novas gerações precisam conhecer melhor todo esse universo", salienta Maria Paula Ferreira Curto, diretora de Recursos Humanos, Comunicação e Responsabilidade Social da Biosev. Ela explica que há algumas safras, a empresa se estruturou na área de Responsabilidade Social e desde então vem desenvolvendo projetos com diagnóstico social participativo, planos de relacionamento local e ações como os projetos incentivados, que fazem parte da sua bandeira de integração com a comunidade onde está inserida.

"O setor sucroenergético é um dos mais importantes do país e muitas vezes o desconhecimento do que fazemos gera algumas inverdades e mitos. Evoluímos muito em tecnologia, processos e práticas. Contar a história do setor de maneira clara, didática e estruturada é fundamental para essa mudança de visão, e o projeto pode ser uma das ferramentas para isso", conclui Maria Paula.