Do bagaço ao posto
17/12/2012
Cana-de-Açúcar
POR: O Estado de S. Paulo
É possível que neste momento esteja a caminho da Europa ou dos Estados Unidos um contêiner abarrotado de bagaço ou de palha de cana-de-açúcar. O envio desse tipo de material para o exterior se intensificou nos últimos meses num claro sinal de que a indústria do etanol está prestes a passar por uma revolução. Pelo menos 700 toneladas de bagaço e de palha deixaram o País no último ano para ser alvo de pesquisa e testes em laboratórios estrangeiros.
É a reta final de uma corrida tecnológica para tirar do papel a produção industrial do etanol celulósico, feito não com a parte comestível da cana-de-açúcar, mas com os resíduos dela. Esse combustível, chamado de segunda geração, pode ser produzido também com restos de madeira, sabugo de milho ou palha de trigo - e qualquer outra matéria-prima que tenha celulose na sua composição. Além de ser um combustível menos poluente, ele não compete com os alimentos - daí vem grande parte de seu prestígio.
Por mais de quatro décadas, cientistas do mundo inteiro se desdobraram para desenvolver em laboratório uma tecnologia que convertesse a celulose presente na fibra das plantas em açúcar que, por sua vez, pudesse ser fermentado e transformado em etanol. Já na década de 70, quando o governo federal criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), falava-se na possibilidade de produzir o combustível com restos de madeira, o que já era estudado em países como a Austrália.
Em tubos de ensaio, esse processo já funciona há muito tempo, mas até agora nunca foi testado em escala comercial. Em 2013, tudo leva a crer que o cenário será outro. A estimativa é de que em um ano, três fábricas estejam em operação no mundo - uma delas na cidade de São Miguel dos Campos, a 60 quilômetros de Maceió.
No centro dessa movimentação estão gigantes farmacêuticas, bioquímicas e petroleiras, como a BP, a americana Dupont, a holandesa DSM, e a dinamarquesa Novozymes. No Brasil, Petrobrás, Raízen e a novata GraalBio, do empresário Bernardo Gradin, ex-sócio da família Odebrecht, também estão nessa corrida. "É um mercado que está borbulhando e que vai chamar a atenção nos próximos meses, com o anúncio de novas parcerias e o início da operação de novas unidades", diz Alfred Szwarc, consultor de emissões e tecnologia da União da Indústria de cana-de-açúcar (Unica).
No mês passado, a norte-americana Kior deu a largada para essa nova era na produção de biocombustível de segunda geração. Ela iniciou a produção comercial de gasolina e diesel feitos a partir de uma espécie de madeira comum no sul dos Estados Unidos. Com capacidade para produzir 40 milhões de litros por ano, a fábrica tem entre seus clientes a FedEex e a Chevron.
Mas a pioneira na produção de etanol de segunda geração deve ser uma italiana. A M&G, maior fabricante de PET do mundo, investiu US$ 200 milhões numa planta localizada na cidade de Crescentino, no norte da Itália, com capacidade para produzir até 76 milhões de litros por ano. Segundo a assessoria de imprensa da companhia, a operação deve começar ainda nesta semana, com a etapa de pré-tratamento de matéria-prima que, nesse caso, é a palha do trigo.
Até agora, já foram anunciados cerca de 60 plantas de biocombustível de segunda geração (2G) no mundo - apenas 17 são comerciais e o restante é para testes. No Brasil, estão quatro desses projetos de escala industrial. Por enquanto. Com apenas 2% da terra arável ocupada por plantações de cana-de-açúcar, clima favorável e matéria-prima abundante, o País é um dos lugares mais cobiçados quando o assunto é etanol de segunda geração. "O mundo está olhando para Brasil nesse momento", diz Szwarc. "Temos mais biomassa do que qualquer outro lugar do planeta." Há dois meses, ele visitou uma planta-piloto da suíça Clariant, na Alemanha, e descobriu que a empresa já faz testes com o bagaço de cana-de-açúcar. A maior produtora americana de etanol de milho, a Poet, também já sonda o mercado brasileiro. E a DSM, que é sócia da Poet no projeto de uma planta comercial de etanol de segunda geração nos Estados Unidos, e fornece leveduras para o processo de fermentação, também afirmou que pretende desenvolver uma planta no Brasil.
Na vanguarda. Embora tenha chegado por último nesse mercado, a GraalBio tem tudo para ser a pioneira por aqui. Com investimentos de R$ 300 milhões, dos quais 70% devem ser financiados pelo BNDES, a empresa espera iniciar a produção em dezembro do ano que vem na unidade de São Miguel dos Campos, em Alagoas. A planta terá capacidade para produzir 82 milhões de litros de etanol celulósico por ano. "A meta é ter mais quatro plantas até 2017 e se consolidar como um dos maiores produtores do mundo", diz o presidente Bernardo Gradin.
Ex-presidente da Braskem, ele entrou nesse negócio depois de deixar a sociedade com a família Odebrecht em função de uma disputa societária em 2010. A ideia surgiu de uma conversa com o pesquisador da Unicamp Gonçalo Pereira e o amigo Alan Hiltner no restaurante da universidade. Gradin queria associar inovação à uma matéria-prima que o Brasil tem em abundância. Produzir etanol e bioquímicos usando como fonte a cana-de-açúcar acabou sendo um caminho óbvio. O esboço do plano foi desenhado pelos três num guardanapo manchado de café que Gradin guarda até hoje.
O modelo de negócio da Graal é baseado numa engenhosa estrutura de alianças, que integra toda a cadeia produtiva: desde as usinas de primeira geração de etanol, de onde virá a matéria-prima, até os fornecedores de tecnologia. Os contratos foram firmados de modo que cada um dos parceiros é responsável pelo sucesso do elo seguinte da cadeia.
A primeira parceria foi firmada com a M&G (aquela que está para começar a operação na Itália). É na planta-piloto dessa empresa, na Europa, que estão sendo realizados os testes para o início da produção em dezembro do ano que vem. A M&G forneceu o equipamento para a fase de pré-tratamento do bagaço e da palha da cana-de-açúcar. Da Novozymes, vieram as enzimas que vão converter as fibras de celulose em açúcar e da DSM, a levedura geneticamente modificada que fará a fermentação.
Com essas associações, a Graal pulou as etapas de laboratório, planta-piloto e planta-demonstração que costumam anteceder a produção comercial. No mercado, concorrentes e especialistas dizem que partir direto para a produção em escala pode comprometer o início da operação, já que qualquer ajuste pode exigir grandes intervenções. "Os riscos são maiores? Com certeza. Mas eles são inerentes ao pioneirismo. As vantagens de ser o primeiro também são muitas", diz Gradin.
Mais comedida, a Raízen, joint venture entre Cosan e Shell, deve iniciar a produção de 40 milhões de litros de etanol celulósico em Piracicaba em julho de 2014. A engenharia está sendo desenvolvida em conjunto com a Iogen, parceria que foi herdada da associação com a Shell. A meta da Raízen é integrar o processo de segunda geração a algumas das 24 usinas de primeira geração que já estão em operação. Juntas, elas têm capacidade de produzir 2 bilhões de litros de etanol e 4 bilhões de toneladas de açúcar por ano. "O que queremos é produzir mais etanol na mesma capacidade instalada", diz João Alberto Abreu, diretor de bioenergia e tecnologia da Raízen. "O objetivo é aumentar em 50% a produção."
A primeira planta, de Piracicaba, vai consumir R$ 206 milhões em investimentos. A missão de colocá-la em operação está com Eduardo Calichman, diretor de processos industriais da Raízen, de 39 anos. Em janeiro, ele se muda com a mulher e o filho para acompanhar os testes com o bagaço da cana na planta da Iogen, no Canadá. "Já mandamos 400 toneladas de biomassa para lá de navio", conta. "Os canadenses ainda estão se acostumando com as dimensões do nosso mercado." Daqui um ano e meio, Calichman volta ao Brasil para colocar a unidade de Piracicaba para funcionar.
Até lá, é provável que outras operações também já estejam em andamento, como a da Petrobrás. "Estamos confiantes em começar a produzir no primeiro semestre de 2015", diz Miguel Rossetto, presidente da Petrobrás Bionergia. Com nove usinas que produzem 1,3 bilhão de litros de etanol de primeira geração por ano, a estatal vem estudando novas tecnologias de produção desde 2004. Em oito anos, investiu R$ 20 milhões. E para os próximos quatro multiplicou por 15 o orçamento.
Em junho, a estatal chegou a produzir 80 mil litros de etanol 2G em parceria com uma empresa americana para abastecer 40 veículos que fizeram o transporte dos participantes da Conferência Rio+20. Rossetto não soube dizer quanto custou o litro desse combustível. "Ainda não chegamos ao preço ideal, mas estamos muito próximos disso", afirma. Ele não descarta novas parcerias com empresas do setor. "Tenho dialogado com todos os players desse mercado", diz Rossetto. "Nessa etapa, não há competidores, mas muita colaboração."
Com um modelo de negócio diferente dos demais, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) adotou uma saída para entrar no mercado de etanol de segunda geração que o coloca ao mesmo tempo como potencial parceiro e competidor. Ele está desenvolvendo uma tecnologia própria que é complementar à da usina de primeira geração e pretende licenciá-la aos usineiros ou a qualquer outra empresa que queira explorar esse negócio.
O CTC começou a estudar o etanol celulósico em 2007 quando ainda era um centro de pesquisa, sem fins lucrativos, ligado à Copersucar. Em 2011, o centro passou por uma reestruturação interna e se tornou uma S.A.. A partir de agora, seus serviços serão vendidos ao mercado e para as 150 usinas associadas - inclusive o etanol de segunda geração, que se tornou uma de suas principais apostas para se provar como empresa. A planta de demonstração, com capacidade para produzir até 4 milhões de litros por ano, começa a funcionar em meados de 2013. "Etanol celulósico é mais velho do que andar para frente", diz Gustavo Leite, presidente do CTC. "O desafio é produzir a um custo competitivo, porque o nome desse jogo é custo."
Competitividade. Os coquetéis de enzimas e os micro-organismos geneticamente modificados estão entre as variáveis que mais encarecem o etanol de segunda geração. Aqui no Brasil, o setor trabalha com um número mágico: para ser competitivo, o combustível precisa ter um custo inferior a R$ 1 por litro - que é o custo do etanol de primeira geração. Sem chegar nesse valor, a produção comercial não é economicamente viável. Por isso, a produção em escala comercial levou tanto tempo para se tornar realidade.
No Brasil, as condições são ainda mais difíceis. Embora o País tenha saído na frente no desenvolvimento do etanol de primeira geração, nos últimos anos a indústria da cana viu sua produtividade despencar por falta de investimento. "O milho americano está 15 anos à frente da cana brasileira", diz Gustavo Leite do CTC.
Em 2006, o País perdeu o posto de maior produtor de etanol para os Estados Unidos e, dois anos depois, a crise financeira mundial deu uma rasteira definitiva no setor. Projetos de ampliação foram cancelados e, com a escassez de cana, a produção de açúcar foi privilegiada. Soma-se a isso o fato de que o preço da gasolina na bomba está praticamente congelado há anos.
Já os Estados Unidos incentivam fortemente a produção de biocombustível de segunda geração com subsídios, empréstimos e uma série de outros programas, o que inclui o comprometimento do governo de comprar 136 bilhões de litros de biocombustível 2G até 2022. Só nos chamados "grants", um incentivo a fundo perdido, o governo americano aplicou em torno de US$ 2 bilhões em nove anos.
No Brasil, a carteira do BNDES até pouco tempo não passava de R$ 100 milhões para o desenvolvimento da indústria de etanol de segunda geração. Neste ano, o banco criou um programa para financiar projetos de inovação no setor sucroalcooleiro, o PAISS: 35 planos de negócios foram aprovados, num valor de R$ 3 bilhões. Por que demorou tanto? "Porque o Brasil passou muito tempo na confortável posição de ser o produtor de etanol mais barato do mundo", disse Artur Yabe, gerente do departamento de biocombustíveis do BNDES. "Agora, a produtividade está caindo e a gente precisa se mexer."
Naiana Oscar