Por: Fernanda Clariano
Mineiro de Bom Despacho, Maurício Lopes graduou-se em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa-MG. Pesquisador de carreira, iniciou sua trajetória na Embrapa em 1989 e ao longo dos anos desempenhou várias funções na instituição. Em 2012 iniciou sua gestão como presidente da Embrapa e de lá para cá tem enfatizado em sua atuação o foco na visão de futuro e na busca por novos espaços de liderança e protagonismo para a empresa, em áreas e ações que ultrapassem os limites das porteiras das propriedades. Em entrevista para a Revista Canavieiros, Maurício Lopes falou sobre os trabalhos desenvolvidos pela instituição e dos desafios. Confira!
Revista Canavieiros: De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), estima-se que o mundo terá 9 bilhões de habitantes em 2050. Qual o papel do Brasil para alimentar toda essa população? Maurício Lopes: O papel não só do Brasil, mas do mundo, é desafiador. A expectativa é de que a população deva se estabilizar em torno de 2050, mas até lá teremos que avançar muito na capacidade de produção mundial de alimentos - talvez em cerca de 70%, com populações crescendo em regiões que não são exatamente capazes de alcançar a sua própria segurança alimentar, como Ásia, Oriente Médio e África.
Teremos que pensar não só na produção de alimentos, mas na segurança alimentar e nutricional, associadas a outras questões e fragilidades que surgem para a agricultura, que por sua vez não pode estar desvinculada da preocupação com o desenvolvimento sustentável. Os 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), estabelecidos também pela ONU, refletem as principais preocupações mundiais e a agricultura brasileira tem estreita relação com praticamente todos eles.
O Brasil compartilha a preocupação com as mudanças climáticas, que deverão se intensificarde forma mais severa nas regiões tropicais do globo. O desperdício de alimentos e as formas de contê-lo e, consequentemente, o desperdício de energia, sem dúvida também estão na pauta brasileira nesse contexto de contribuir com a segurança alimentar e nutricional no futuro. Não é mais possível conviver com as perdas de 30% dos alimentos produzidos, de acordo com dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura).
A preservação dos recursos naturais que sustentam a vida é outra prioridade nacional sem a qual não há possibilidade de se pensar em produção de alimento. Vamos ter que intensificar o desenvolvimento de conhecimentos, tecnologias e métodos de gestão de recursos frágeis e escassos, para que possamos utilizá-los de maneira inteligente e sustentável.
Os ganhos com produtividade dos principais cultivos que têm importância para alimentação no mundo, como milho, arroz e trigo, precisam ser revistos no que diz respeito aos métodos e tecnologias utilizados. Nós teremos que trazer novos genes, novos conceitos, novos paradigmas para o processo de melhoramento genético importantepara a sustentabilidade das lavouras e criações animais. Diversificar a produção é outro caminho importantepara evitarmos dependência excessiva em um conjunto restrito de espécies e sistemas de produção. Nós temos que olhar para a biodiversidade, como fonte de nova variabilidade e diversidade, lançando mão de ferramentas inovadoras, como a genômica, em associação com inovações do mundo digital, que vão nos ajudar a conter o decréscimo da eficiência dos métodos para elevação de produtividade.
Outro desafio é lidar com o crescimento de obesidade da população. Já estamos sendo pressionados a ajudar o mundo a se mover para fora do paradigma da cura, que ficou muito caro e inviável para grande parte da população. Estamos cada vez mais empenhados em pesquisa e inovação que faça com que a agricultura contribua com alimentos de maior densidade nutricional, com novas funcionalidades, que ampliem o bem-estar e a saúde das pessoas.
Enfim, nós não vamos mais poder pensar uma agricultura que é provedora só de alimento, fibra e energia. Nós vamos ter que pensar numa agricultura que seja promotora de saúde e qualidade de vida para todos. É assim que seguiremos em direção a 2050, gerando conhecimento e atuando para a sua transformação em inovações que se convertam em soluções para os problemas da sociedade.
Revista Canavieiros: Um dos grandes desafios é descarbonizar a agricultura. Como a Embrapa está tratando este tema? Lopes: O Brasil já avançou muito na produção de energias renováveis através da cana de açúcar e do álcool, mas é preciso mais. Por isso, a pesquisa tem avançado na busca de alternativas de biomassa como fonte não só de energia renovável, mas de outros componentes que sirvam a outras indústrias, como por exemplo, a indústria química. Há no mundo uma clara tendência de surgimento de uma indústria da química verde, a partir da derivação da biomassa de componentes que hoje são derivados da indústria petroquímica e do petróleo.
A Embrapa dá grande prioridade à ampliação de capacidade em tecnologia de biomassa, buscando novas fontes e novas formas de derivar da biomassa componentes importantes, não só para a indústria energética, mas também para a indústria química. No futuro, entendemos que esta será uma ótima oportunidade para agricultura nos trópicos. Podemos produzir biomassa com escala, logística e uma base industrial que não existe em outras partes do mundo.
A agricultura ainda é muito dependente de combustíveis fósseis, tanto na produção industrial de insumos diversos quanto nos transportes. Precisamos mudar esta lógica que é cada vez mais considerada indutora de eventos extremos, em função das mudanças climáticas. É preciso buscar um modelo de produção que preserve recursos escassos e não renováveis, como a água e o solo. É por isso que a Embrapa está totalmente engajada em uma política pública muito importante, o programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), que foi implantado a partir de conhecimentos gerados pela empresa e por seus parceiros para descarbonizar a agropecuária brasileira. E a empresa está igualmente engajada no desafio de redução de desperdícios. A FAO estima que 30% de todos os alimentos produzidos no mundo são perdidos e que, com isso, perde-se 38% de toda a energia usada para produzi-los.
Revista Canavieiros: Quais os avanços e as conquistas da Embrapa nas últimas décadas? Lopes: Nas últimas cinco décadas, o país passou de importador de alimentos para um dos mais importantes produtores e exportadores mundiais, alimentando aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas no mundo. Os benefícios dessa condição possibilitam preços mais acessíveis aos consumidores, elevam a renda e a geração de empregos e impulsionam a participação da agricultura no PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. A disponibilidade de recursos naturais, associada a políticas públicas, a competências técnico-científicas e ao empreendedorismo dos agricultores brasileiros foram fundamentais para esse desenvolvimento agrícola do país. A ciência agropecuária ajudou a construir no Brasil três pilares que sustentaram o desenvolvimento de uma agricultura moderna, produtiva e competitiva, capaz de produzir alimentos com eficiência semelhante a de países desenvolvidos.
O primeiro pilar da moderna agricultura brasileira foi a capacidade de transformar grandes extensões de solos ácidos e de baixa fertilidade em solos férteis. Esse avanço revolucionou a região dos Cerrados, que nos anos 70 representava um grande vazio econômico e um problema para a interiorização do desenvolvimento no nosso país. A ampliação do conhecimento sobre os solos tropicais abriu caminho para a incorporação de práticas avançadas de construção e manejo de fertilidade que viabilizaram aos nossos produtores, em curto prazo, grandes extensões de solos com fertilidade muito similar àquela das grandes nações agrícolas do mundo.
O terceiro pilar foi o desenvolvimento de uma plataforma inédita de práticas conservacionistas e de defesa ambiental. Variedades modernas de porte mais baixo, insumos e técnicas de manejo que viabilizaram a rápida incorporação da prática do plantio direto, ajudaram a reduzir drasticamente a erosão, além de promover a recuperação da qualidade da água e das nascentes. Além das tecnologias de controle biológico e manejo integrado de pragas, a fixação biológica de nitrogênio permite que toda a soja brasileira seja cultivada sem o uso de fertilizantes nitrogenados, o que propicia uma economia de US$ 15 bilhões por ano ao país, além de reduzir drasticamente a poluição das reservas de água e a emissão de gases de efeito estufa.
Esses grandes saltos da ciência agropecuária brasileira, associados à coragem e ao empreendedorismo dos nossos produtores deram visibilidade global ao Brasil. Nos tornamos reconhecidos no mundo como importantes produtores de conhecimento para agricultura tropical e exportadores que contribuem para a segurança alimentar no mundo. O Brasil é hoje liderança inconteste na geração de conhecimento científico no cinturão tropical e, mais, na eficiente tradução desse conhecimento em inovações concretas e impactantes. Como a redução do gasto médio do brasileiro com as refeições de cada dia – de cerca de 48% de sua renda nos anos 1970 a menos de 20% na atualidade.
Revista Canavieiros:Quais os desafios e estratégias da Embrapa para o futuro? Lopes: Os desafios à frente são substanciais. A expansão da demanda mundial por água, alimentos e energia é fenômeno que ocorre há décadas, tendo se intensificado nos últimos anos, em decorrência do aumento populacional nos países em desenvolvimento, da maior longevidade, da intensa urbanização, do incremento da classe média, principalmente no Sudeste Asiático e das mudanças no comportamento dos consumidores. Projeta-se, como consequência desses fatores, o crescimento da demanda global por energia em 40% e por água em 50% e a necessidade de expansão da produção de alimentos em 35%, até 2030. Internacionalmente, muitos esforços estão sendo envidados para estabelecer uma relação mais equilibrada entre população e ambiente e os componentes de produção de alimentos e energia. Destacam-se os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) estabelecidos sob a coordenação das Nações Unidas, visando garantir, até 2030, um planeta mais próspero, equitativo e saudável. Agricultura e alimentação estão no centro dessa agenda mundial, e o Brasil está preparado para desempenhar um papel central no alcance das metas estabelecidas pelos países membros da ONU.
Assim, o conjunto mais recente de sinais e tendências globais e nacionais sobre as transformações na agricultura foram captados e analisados pela Embrapa e sua rede de parceiros, e deram origem a um conjunto de sete megatendências: Mudanças Socioeconômicas e Espaciais na Agricultura; Intensificação e Sustentabilidade dos Sistemas de Produção Agrícolas; Mudança do Clima; Riscos na Agricultura; Agregação de Valor nas Cadeias Produtivas Agrícolas; Protagonismo dos Consumidores; e Convergência Tecnológica e de Conhecimentos na Agricultura. Essas megatendências integradas, que apontam desafios para a agricultura do país, foram detalhadas no livro Visão: o Futuro da Agricultura Brasileira, que tem como horizonte o ano 2030, em estreito alinhamento com os ODS.
Teremos, enfim, que enfrentar as mudanças de clima, assegurar a presença dos nossos produtos – de forma competitiva - em mercados ávidos por segurança, qualidade e novas funcionalidades; assegurar rastreabilidade e certificação na agropecuária; e lidar com o desperdício de alimentos e, em decorrência disso, com a perda de energia e água, que são recursos cada vez mais escassos.
Para tratar de forma inteligente e planejada as múltiplas questões complexas que se avolumam diante de nós precisaremos de laboratórios modernos, campos experimentais estruturados, equipamentos atualizados, pessoas preparadas e uma grande rede de parceiros nacionais e internacionais que complementem a nossa capacidade. A Embrapa, sensível à realidade desafiadora que emerge à nossa frente, instituiu, em dezembro de 2012, o Sistema Agropensa, um ambiente de observação e análise desenhado para orientar as estratégias da empresa. O Agropensa produz informações qualificadas para o norteamento dos nossos programas de PDI (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação) e o trabalho dos nossos parceiros, de forma a continuarmos contribuindo para que agricultura continue dando grandes saltos no Brasil.
Revista Canavieiros: A digitalização é o futuro da agricultura? Lopes: Sem dúvida que sim. Já estamos vivendo uma nova e profunda revolução tecnológica, marcada pela digitalização, pela automação que alimenta a explosão do big data e da internet das coisas, culminando com avanços na área de inteligência artificial que nos aproxima de uma realidade que víamos apenas nos livros e filmes de ficção científica. O Brasil já se destaca na agricultura de base digital, em especial pela incorporação de processos da chamada agricultura de precisão. Cresce nas áreas mais avançadas de produção do país o uso de máquinas inteligentes guiadas por GPS para plantio, tratos culturais e colheita de precisão, com economia de insumos, ganhos de produtividade e sustentabilidade.
Na programação de pesquisa da Embrapa destaca-se um portfólio de pesquisa dedicado aos temas da transformação digital e da automação na agricultura, com diversos projetos dedicados a desafios nos campos das geotecnologias avançadas, manejo sítio-específico e agropecuária de precisão, sistemas de diagnóstico de doenças em plantas, sistemas inteligentes para manejo de rebanhos, automação em sistemas de produção, modelos integrados para simulação de sistemas de produção sustentáveis, dentre muitos outros.
A Embrapa tem dado também grande ênfase ao desenvolvimento de aplicativos móveis, recursos que prometem revolucionar a disseminação de tecnologias e conhecimentos gerados pela pesquisa agropecuária. Diversas parcerias com o setor privado já estão em curso, como forma de combinar capacidades da transformação digital e de automação, com o vasto conhecimento contido na rede Embrapa sobre a base de recursos naturais e os sistemas produtivos brasileiros. Por exemplo, imagens captadas por um drone ou vant (veículo aéreo não tripulado) em breve indicarão ao fazendeiro que parcela da lavoura precisa de irrigação, de reforço na adubação ou já pode ser colhida. Imagem de lesões em plantas ou frutos, colhida por um tablet e comparada a padrões já armazenados, medirá a intensidade do ataque de praga ou doença, e indicará o controle adequado. O conceito big data, que é essa possibilidade de gerar, medir, coletar e armazenar assombrosas quantidades de dados e informações, a partir de nossas avaliações e escolhas e usá-los para fazer novas escolhas, já está entre nós.
Revista Canavieiros: Como a pesquisa, desenvolvimento e inovação podem ajudar na agregação de valores na cadeia produtiva? Lopes: É necessário investir em inovações para agregação de valor às commodities, criando mais oportunidades para a agroindústria brasileira, em especial em mercados mais competitivos, sofisticados e rentáveis. A Embrapa está atenta ao fato de que a agricultura do futuro deverá contribuir na promoção da saúde e qualidade de vida das pessoas, com oferta de alimentos de maior densidade nutricional e com novas funcionalidades, ajudando o mundo a lidar com o desafio da segurança nutricional. O Brasil tem um potencial extremamente elevado para se manter à frente no ranking dos países líderes na produção de alimentos e oferecer produtos de maior qualidade para os mercados interno e externo, cada vez mais exigentes. Tudo isso, aliado à sustentabilidade em todas as etapas da produção. Sem o conhecimento gerado pela pesquisa e as estratégias de inovação voltadas para as perspectivas de um futuro desafiador, dificilmente será possível evoluir e atender às demandas de uma sociedade cada vez mais urbana e exigente.
Revista Canavieiros: A cada ano que passa os consumidores estão exigindo alimentos mais seguros, nutritivos e com novas funcionalidades. Como a Embrapa vem trabalhando essa questão? Lopes: Esta é uma questão desafiadora para a pesquisa. Hoje, não se pode mais pensar em uma agricultura provedora só de alimento, fibra e energia. Temos que pensar numa agricultura que seja promotora de saúde e qualidade de vida. A integração alimento-nutrição- saúde é uma pressão certa para a agricultura no futuro. A agricultura será cada vez mais chamada a contribuir com alimentos de maior densidade nutricional e com novas funcionalidades no futuro e pesquisa agropecuária é um caminho para se avançar nesse campo. Dentre os muitos trabalhos realizados pela empresa podemos citar o esforço de biofortificação de alimentos no Brasil, via melhoramento convencional, que busca o desenvolvimento de cultivares com altos teores de ferro, zinco e pró-vitamina A de alimentos básicos como arroz, feijão, feijão-caupi, batata-doce, mandioca, abóbora, trigo e milho. Alguns desses produtos começam a deixar os laboratórios e campos experimentais da Embrapa para serem cultivados por agricultores de municípios do Piauí, Maranhão e Minas Gerais, entre outros estados. E também estão sendo incluídos na merenda escolar, onde sua eficácia na prevenção de doenças em crianças é avaliada por cientistas. Nosso intenso trabalho na ampliação de alternativas alimentares, na especialização e na diversificação de dietas e na biofortificação é um exemplo do nosso comprometimento não só com a segurança alimentar, mas também com a segurança nutricional da população brasileira.
Revista Canavieiros: Como a Embrapa vê o papel da ciência? Lopes: Para a Embrapa, a ciência é o motor do desenvolvimento. Ao desenvolver um modelo de agricultura fortemente assentado em conhecimento científico e tecnológico o Brasil se destacou como a única grande nação agrícola do cinturão tropical do globo e isso tem feito toda a diferença para o nosso país. No Brasil dos anos 1970, a autossuficiência na produção de alimentos ainda estava muito distante da realidade e o Brasil convivia com o espectro sombrio da insegurança alimentar. Éramos um grande importador de alimentos, como grãos, carnes e leite e vivíamos frequentes crises de abastecimento. A crise do petróleo, em 1973, agravou a situação, pois os gastos com petróleo e com a importação de alimentos traziam grande instabilidade econômica, apreensão e incerteza. Foi naquele contexto de crise e sob a inspiração de brasileiros visionários que surgiu a Embrapa, que fortaleceu universidades, a pesquisa no âmbito dos Estados e a assistência técnica e a extensão rural no país. O Brasil conseguiu aliar a vontade política à inovação e desenvolver um modelo inédito de agricultura tropical baseada em ciência. Uma equação infalível, que em 40 anos permitiu ao Brasil superar a dependência da importação de alimentos para se tornar um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo. Levando em conta os desafios à frente precisaremos investir de forma ainda mais ousada em ciência e inovação, com postura visionária e prospectiva, em síntese com aos anseios da sociedade e com os desafios e rupturas que despontam no horizonte.
Revista Canavieiros: Drones, robótica, inteligência artificial. Termos geralmente associados à ficção científica, mas estão cada vez mais presentes nas lavouras brasileiras. Como a Embrapa vê a agricultura digital e como está inserida nessa transformação digital? Lopes: A transformação digital é uma realidade e permitirá à agricultura incorporar práticas e processos de precisão, amplo uso de sensores e mecanismos sofisticados de previsão e resposta a variações de clima, além de aplicativos e ferramentas para sofisticação da gestão das unidades produtivas e das indústrias ligadas ao setor. O agronegócio do futuro será certamente marcado pela transformação digital e seus impactos na automação. De acordo com a FAO, em 2010 a população urbana ultrapassou, pela primeira vez, a população rural no mundo. Estima-se que em 2050 sete em cada dez pessoas viverão nas cidades, tornando ainda mais rarefeita a população rural. Portanto, máquinas e equipamentos serão imprescindíveis para a garantia da segurança alimentar no futuro. Com a vantagem de que a automação digitalmente habilitada irá permitir ganhos importantes em eficiência e precisão, ajudando a agricultura a superar práticas consideradas hoje pouco sustentáveis. Big data, internet das coisas e inteligência artificial em conjunção com sensores e máquinas sofisticadas já estão viabilizando a agricultura de precisão e permitindo ganhos cada vez maiores em duas frentes: produtividade e sustentabilidade.
O Brasil já se destaca na agricultura 4.0 e cresce nas áreas mais avançadas de produção do país o uso de máquinas inteligentes guiadas por GPS para plantio, tratos culturais e colheita de precisão, com economia de insumos, ganhos de produtividade e sustentabilidade. Na programação de pesquisa da Embrapa destaca-se um portfólio de pesquisa dedicado aos temas da transformação digital e da automação na agricultura, com projetos dedicados a desafios nos campos das geotecnologias avançadas, manejo sítio-específico e agropecuária de precisão, sistemas de diagnóstico de doenças em plantas, sistemas inteligentes para manejo de rebanhos, automação em sistemas de produção, modelos integrados para simulação de sistemas de produção sustentáveis, dentre muitos outros. A empresa tem dado grande ênfase ao desenvolvimento de aplicativos móveis, recursos que prometem revolucionar a disseminação de tecnologias e conhecimentos gerados pela pesquisa agropecuária. Diversas parcerias com o setor privado já estão em curso, como forma de combinar capacidades da indústria de TICs e de automação, com o vasto conhecimento contido na rede Embrapa sobre a base de recursos naturais e os sistemas produtivos brasileiros. Esses são apenas alguns exemplos que mostram que a nossa empresa está atenta e aberta à cooperação que ajude a agricultura brasileira a se inserir na próxima revolução industrial.
Revista Canavieiros: A Embrapa foi uma iniciativa que deu certo. O senhor pode destacar os marcos principais? Lopes: A função da Embrapa sempre foi buscar respostas para a agricultura do Brasil. Um aspecto que fundamenta essa atuação da empresa é a formação qualificada de nossas equipes de pesquisa e as parcerias que articulamos ao longo desses 45 anos. Investimos muito na capacitação de nossos técnicos e na interação deles com as melhores instituições do mundo em ciência e tecnologia agropecuária. Nossa equipe é extremamente competente e contamos com uma imensa rede de parceiros no Brasil e no mundo.
Programas públicos se dedicam à pesquisa de maior risco, de médio e longo prazos. Procuram antever tendências, desafios e oportunidades, trabalham na busca de soluções tecnológicas com uma perspectiva de tempo mais ampla, menos imediata. Cito, como exemplo, o melhoramento genético preventivo para gerar variedades capazes de enfrentar pragas quarentenárias que podem chegar ao Brasil daqui a quinze anos ou mais. Dificilmente o setor privado faria esse investimento, assim como outros similares, em condições de incerteza e de resultados e retornos mais remotos no que se refere a prazos.
Daí também a importância da garantia dos recursos públicos. Há estudos que respaldam esse argumento, como o da professora Mariana Mazzucato, da Universidade de Sussex, que culminaram no seu livro "O Estado Empreendedor", publicado em 2013 na Inglaterra e traduzido no ano seguinte aqui no Brasil. Segundo ela, o investimento público persistente é requisito fundamental para a inovação na sociedade. Conhecimentos gerados pela pesquisa pública potencializam a capacidade do setor privado. A complementaridade dos papéis de uma e de outra é fundamental para o sistema de inovação dos países.
Revista Canavieiros: No final do ano durante o lançamento do Selo Agro + Integridade, o senhor foi citado pelo ministro da Agricultura Blairo Maggi como o “garoto propaganda” da Embrapa e, segundo ele, quando o senhor é anunciado nos eventos mundo afora é muito aplaudido. Como é receber tamanho elogio? Lopes: Na verdade, representando a Embrapa, assumo a posição que qualquer um dos nossos empregados assumiria. Sabemos a importância da empresa, temos consciência do que a pesquisa desenvolvida pela Embrapa representou e representa para o Brasil. É em nome desta relevância e do respeito que a empresa conquistou internacionalmente que nos apresentamos perante a sociedade brasileira e nos mais variados ambientes internacionais. Trabalhamos em uma instituição comprometida com a produção de conhecimento, com a busca da melhoria da qualidade de vida, com a sustentabilidade, com a inovação, com olhar voltado para o futuro, por mais desafiador que seja. Representar a Embrapa, contribuir com o papel que ela tem desempenhado em todos os segmentos da cadeia produtiva é uma grande responsabilidade, de comunicar e demonstrar o esforço que sabemos que é empreendido no dia a dia de nossas equipes em todas as nossas unidades no Brasil. Portanto, ser da Embrapa é estar vinculado a um compromisso maior com os resultados que precisam ser entregues à agricultura e à sociedade e muito me honra cumprir, na posição de presidente, a nobre missão de representar e defender a empresa, no país e nos ambientes internacionais onde ela é chamada.
Revista Canavieiros: Quais os valores que a Embrapa tem entregado para a sociedade? Lopes: Eu dou grande destaque para a consolidação e a disseminação de tecnologias para a intensificação sustentável da produção agropecuária brasileira. Acredito que a Embrapa e suas instituições parceiras estão ajudando o Brasil a desenvolver nesse momento a próxima grande revolução da agropecuária tropical – a intensificação sustentável para uma produção de baixo impacto e baixo carbono. Tecnologias como a iLP (Integração Lavoura-Pecuária) e iLPF (IntegraçãoLavoura-Pecuária-Florestas) buscam a produção sustentável integrando atividades agrícolas, pecuárias e florestais na mesma área, em cultivo consorciado, em sucessão ou rotacionado. Pesquisa recente da empresa Kleffmann demonstrou que os sistemas integrados crescem no Brasil já alcançando uma área de 11,5 milhões de ha.
A Embrapa segue também priorizando, além das grandes commodities – soja, milho e algodão, o desenvolvimento de cultivares de arroz, feijão, mandioca, banana, amendoim, café, guaraná, mandioca, maracujá, melão, palma de óleo, tomate, trigo, uva além de grande diversidade de hortaliças e frutas tropicais. Ao longo da última década, a Embrapa se tornou também a principal desenvolvedora de gramíneas tropicais para pastagens, o que tem permitido à pecuária brasileira alcançar uma posição de grande destaque no mundo.
Uma parte muito significativa da produção da Embrapa não se cristaliza ou se materializa em insumos e produtos, e por isso passa despercebida por muitos. Por exemplo, o Código Florestal incorporou grande volume de conhecimentos gerados pela empresa e sua implantação se beneficia de enorme volume de informações e conhecimentos gerados pela empresa. O Zoneamento de Risco Climático racionaliza a exploração agrícola no território nacional com grande impacto na política de crédito e seguro agrícola. Novos espaçamentos e conhecimentos sobre solo e clima, escolha ótima de insumos, práticas de manejo integrado de pragas e estudos de Inteligência Territorial Estratégica são alguns dentre inúmeros exemplos de conhecimentos gerados continuamente disseminados pela empresa com impactos nos sistemas produtivos.
A Embrapa e suas organizações parceiras são responsáveis pelo desenvolvimento e disseminação das tecnologias que viabilizam a política de promoção da Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC), um compromisso internacional do Brasil. Esta é a mais arrojada política pública de descarbonização da agricultura em todo o mundo, que estimula a incorporação de práticas sustentáveis como a recuperação de pastagens degradadas, a iLPF, o SPD (Sistema de Plantio Direto), a FBN (Fixação Biológica de Nitrogênio), dentre outras. A Embrapa tem dedicado enorme esforço para disseminar tecnologias que ajudam o Brasil a neutralizar gases de efeito estufa na produção de alimentos, gerando serviços ambientais, créditos de carbono e bem-estar animal, projetando a nossa agricultura como uma das mais sistêmicas e sustentáveis do planeta.
Nenhuma empresa de pesquisa agropecuária no mundo consegue manter mais de 80 programas de melhoramento genético diferentes, abordando grãos (commodities de interesse comercial do grande agronegócio), pastagens, frutas, hortaliças, mandioca, espécies florestais, pecuária e aquicultura, para diferentes regiões e biomas brasileiros, que geram conexões imediatas com centenas de projetos na fronteira do conhecimento, em áreas como biotecnologia, nanotecnologia, automação, agricultura de precisão, transformação digital etc. Isso sem falar da participação dos nossos centros de pesquisa na formação de milhares de jovens estudantes de graduação e pós-graduação, que, em parceria com as universidades, encontram nos laboratórios e campos experimentais da Embrapa cenário fértil para o desenvolvimento e aprimoramento de suas teses e trabalhos acadêmicos.
A plataforma on-line foi desenvolvida pela Embrapa Territorial (Campinas-SP) e mostra a origem, os caminhos e o destino dos principais produtos da agricultura e da pecuária nacionais. Participei do lançamento juntamente com o secretário-executivo do Mapa, EumarNovacki; o chefe-geral da Embrapa Territorial, Evaristo de Miranda; parlamentares e outras autoridades e diversos atores do agronegócio.
A empresa acaba de lançar o Sistema de Inteligência Territorial Estratégica da Macrologística Agropecuária, desenvolvido por demanda do Mapa. Este é um sistema inédito que fornece dados sobre áreas de produção, identifica gargalos e oportunidades de investimentos logísticos, atuais e futuros, para ampliar a competitividade de dez cadeias agropecuárias brasileiras: soja, milho, café, laranja, cana-de-açúcar, algodão, papel e celulose, aves, suínos e bovinos. Juntas, essas dez cadeias representam mais de 90% da carga agropecuária do país. O sistema é aberto para qualquer cidadão que queira fazer uso de dados, como mapas, quadros evolutivos, gráficos, localização de áreas de escoamento e encontrar oportunidades ou gargalos para seu negócio ou estudo.
Em síntese, trabalhamos com a premissa de que a pesquisa pública precisa servir como uma “locomotiva limpa-trilho”, que vai à frente removendo impedimentos, para que o setor privado encontre caminho livre para investir com segurança, provendo soluções para os nossos produtores e gerando emprego, renda e progresso para a sociedade brasileira.
Revista Canavieiros: A Embrapa tem sido alvo de algumas críticas. Em artigo publicado recentemente num jornal, o autor argumentou que instituição tornou-se burocrática, com poucos resultados práticos, e que vive de um passado de bons resultados. Como o senhor analisa e recebe essa crítica? Lopes: Toda manifestação pública contribui para promover ou enriquecer debates numa sociedade democrática. No entanto, não é correto acusar a Embrapa de imobilidade diante dos desafios ou das mudanças que afetam a agropecuária nacional. A resposta à pergunta anterior revela muito bem a qualidade das últimas entregas que estamos fazendo para a sociedade brasileira. Temos problemas? Sim. Atravessamos uma crise orçamentária? Sim, todas as instituições que dependem de recursos do Governo Federal estão atravessando essa situação também, mas isso não tem impedido nossos pesquisadores de continuarem desenvolvendo soluções para o campo, mesmo com todas as adversidades diárias. A empresa está passando pela maior transformação administrativa de sua história para adequá-la aos novos tempos e prepará-la para atender às necessidades presentes e futuras da agricultura brasileira e também em resposta ao momento de restrições orçamentárias, à Lei do Teto de Gastos e à Lei das Estatais. Iniciamos em 2017 uma ampla revisão do modelo de gestão e governança da Embrapa. Para aumentar eficiência e dar mais agilidade interna, processos e estruturas foram revisados, o que resultou na redução de 17 para seis áreas administrativas na sua sede e de 46 para 42 unidades de pesquisa e inovação. O processo de mudança seguirá em 2018 junto aos centros de pesquisa em todo o Brasil, com objetivo de proporcionar mais economia e substancial ganho em eficiência. Nossas equipes estão a todo o momento atentas ao que está afetando o campo, antenadas com os problemas dos produtores rurais e se articulando com os atores que fazem o sucesso da agricultura tropical.
Mineiro de Bom Despacho, Maurício Lopes graduou-se em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa-MG. Pesquisador de carreira, iniciou sua trajetória na Embrapa em 1989 e ao longo dos anos desempenhou várias funções na instituição. Em 2012 iniciou sua gestão como presidente da Embrapa e de lá para cá tem enfatizado em sua atuação o foco na visão de futuro e na busca por novos espaços de liderança e protagonismo para a empresa, em áreas e ações que ultrapassem os limites das porteiras das propriedades. Em entrevista para a Revista Canavieiros, Maurício Lopes falou sobre os trabalhos desenvolvidos pela instituição e dos desafios. Confira!