Leandro Karnal - Historiador, professor e pensador
Convulsões sociais, democracia fragilizada, Brasil tentando navegar em mares liberais, preconceito ao agronegócio e, principalmente, a falta de grandes lideranças mundiais. Todos esses temas foram abordados numa entrevista exclusiva realizada pela Revista Canavieiros com um dos maiores pensadores da atualidade, o historiador Leandro Karnal.
A conversa, que aconteceu na ocasião da vinda do palestrante na edição de 2019 do Encontro de Gerentes, promovida pela Copercana, Canaoeste e Sicoob Cocred, pode ser ilustrada como a pintura de um interessante quadro onde, entre os elementos, está a sociedade e como ela se relaciona com a ideia de poder.
Como a obra demanda um tempo para ser compreendida, vamos logo às primeiras pinceladas:
Revista Canavieiros: Como o senhor vê o senso comum negativo que a opinião pública brasileira tem a respeito do agronegócio, justamente ele que é o setor mais forte de nossa economia?
Leandro Karnal: Diferente da época do início da república quando o Brasil era um país agrário e as decisões estavam muito mais no campo, hoje os grandes centros de decisão são urbanos, o que talvez explique em parte essa insensibilidade das cidades em relação ao setor mais dinâmico da economia.
A produção não é urbana, mas as decisões políticas são, e isso cria um cenário antagônico interessante porque é um setor que dá certo no Brasil, que enfrentou muito melhor a crise em relação à indústria ou o comércio, mas, ao mesmo tempo, sofre muitas críticas.
Acho que falta mais estratégia de marketing, falta mais ênfase em seu significado na geração de empregos, na balança comercial e, acima de tudo, na percepção de quanto mais forte for o campo brasileiro, menos as cidades ficarão inchadas.
O processo brasileiro de êxodo rural, que aconteceu no século XX, só não foi maior e mais dramático graças à evolução da produção agropecuária, e seu avanço faz hoje com que muita gente esteja voltando ao interior, fugindo da vida mais difícil e cara dos grandes centros.
Outro ponto é a respeito do clima de oposição que a nação vive hoje, o que é muito ruim. O campo não se opõe à cidade, assim como as commodities não rivalizam com o capital financeiro. Uma pessoa equilibrada consegue ver que são setores complementares fundamentais, que trazem ao país grande dinamismo.
Li hoje, na cobertura do encontro dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que o Brasil é dependente da China, nosso principal parceiro comercial. Contudo, esquecem de falar que lá precisam alimentar mais de 1,4 bilhão de pessoas e que a esperança da população, pensando em segurança alimentar, está na produção brasileira. Aliás, grande parte da esperança de ter comida no prato do mundo está no Brasil.
Revista Canavieiros: Como explicar convulsões sociais que tomam grandes proporções como a que aconteceu recentemente no Chile?
Karnal: O Chile é um país muito específico na América do Sul, sua população é quase igual a da cidade de São Paulo, ele tem riquezas específicas como cobre, a produção de frutas e vinhos. O país possui um IDH muito superior ao do Brasil, um desempenho na educação também maior e uma tradição política completamente diferente.
Mas o risco da convulsão social existe em todos os lugares. Ele pode ser suscitado por uma crise econômica, por um processo de avanço econômico que não contempla todos os setores da sociedade.
Assim, esses eventos são formados pelo acúmulo de voz de gente excluída e um pouco de ressentimento de uma parcela da sociedade que não consegue acompanhar os avanços da nova era. Há também a falta de discursos abrangentes, políticos, éticos; certa incapacidade, especialmente das elites políticas, de se apresentarem como portadores de uma esperança, de uma ideia em si e não tecnocratas que parecem ser insensíveis ao que dizem à maioria da população.
Qualquer solução nacional tem que representar uma esperança forte para todos os envolvidos, tem que mostrar para as pessoas que não há projeto que beneficie um grupo ou uma família, um setor.
O Brasil consegue funcionar hoje porque as pessoas não estão fazendo polarização, elas estão trabalhando, apesar dela existir nas redes e haver manifestações. Pessoas que produzem estão acordando cedo, e não tem tempo de ficar fazendo manifestação contra ou a favor o tempo todo.
Revista Canavieiros: Nesse sentido, qual é a conjuntura brasileira?
Karnal: Como disse, o país está funcionando hoje porque grande parte da população tem uma rotina de vida igual a de quem está nos lendo agora, ou seja, acorda de manhã e, independente se soltarão ou não fulano, o sol nasce cedo e é preciso plantar, vender, trabalhar, produzir.
Esse é o Brasil que funciona, ele trabalha e não passa o dia todo na rede publicando ou consumindo fake news. Lógico que como todo o mundo, vivemos esse problema, mas ele, pelo menos por enquanto, não contamina a nossa sociedade.
Revista Canavieiros: Hoje é perceptível uma queda da popularidade no conceito de democracia clássica. Assim, acredita que ele, como sistema, está carente de uma releitura?
Karnal: Democracia é por definição um sistema frágil, isso porque ela está em constante inversão, ao contrário das ditaduras que são fixas num modelo, ela é aberta a críticas, à livre manifestação, assim sua natureza é instável, por isso ela vive de crise.
E gestar a crise, no estado democrático de direito, é a grande questão da democracia. Sim, ela precisa se reinventar, os modelos de políticos e partidos tradicionais são contestados, a ideia de alguém manifestando em Brasília a minha vontade e me representando sem ter muito vínculo com uma base é um modelo complicado.
Mas acho que estamos vivendo um processo mundial de busca de um outro modelo. A Espanha manifestou dificuldade de formar um novo governo, Israel também teve a mesma dificuldade. A Inglaterra está com uma dificuldade enorme para discutir como sairá da União Europeia.
Então, democracias sólidas como a inglesa e a israelense ou até a espanhola, que é mais contemporânea com o nosso processo de redemocratização, passam por esse dilema, o que faz com que seja possível concluir que temos um cenário de países tão diferentes enfrentando o mesmo desafio.
Acho isso bom porque é sinal de que existem debates. Ditaduras perfeitas como a da Coreia do Norte, onde não há um mínimo sinal de oposição, onde a população não tem direitos, não tem nada além do cultivo da figura de um ditador, quase divinizado, não enfrentam crises, não há manifestações, ninguém vai para a rua.
Agora, você prefere a instabilidade nossa ou a estabilidade deles? Ditadura é sempre um equívoco, seja ela de direita ou de esquerda. Ela até pode resolver um problema pontual, mas cria defeitos estruturais que levamos décadas para recuperar.
Democracia, como diria Churchill, é o pior de todos os sistemas, com exceção de todos os outros.
Revista Canavieiros: Pegando o gancho de Churchill, como enxerga a carência de grandes líderes mundiais, e há uma ligação desse efeito com o surgimento das novas tecnologias?
Karnal: Às vezes temos um líder que não é um poço de carisma, mas está lá no momento certo, como é o caso do primeiro ministro alemão, Helmut Kohl, que liderou o período de reunificação da Alemanha. Também podemos citar o Bill Clinton no domínio mundial dos Estados Unidos pós-guerra fria com a queda da União Soviética.
Assim, concluímos que nem sempre é possível ter um grande líder carismático, o que está em falta em todo mundo são estadistas, alguém que não governe pensando no que as massas vão dizer, como foi o caso do Churchill quando, por exemplo, contrariou grande parte da opinião popular sobre um acordo que fez com a Alemanha.
Um líder desses consegue pensar nos próximos 50 anos e não apenas até o fim de seu mandato. Na iniciativa privada também encontramos pessoas com esse perfil como empresários que conseguem ser estrategistas e não pensar apenas em um curto prazo, mas na sustentabilidade de um negócio por um longo período.
O Brasil tem uma carência enorme de estadistas, faz tempo que não aparece um em nossa política, são pessoas que, para o bem ou para o mal, marcam seu nome na história.
Estátua de Churchill em direção ao Big Ben: segundo Karnal, a falta de grandes estadistas é que os grandes talentos preferem ficar no setor privado
Revista Canavieiros: Há uma relação entre a nação brasileira ter poucos “estadistas” conforme sua definição, por ter uma educação historicamente deficiente?
Karnal: Também, mas não podemos definir isso como uma regra, pois nossa educação era fraca no século XX quando, para o bem ou para o mal, Juscelino Kubitscheck lançou programas de incentivos à instalação da indústria automobilística no Brasil, investiu na interiorização do país não só com a fundação de Brasília, mas também construindo grandes vias de acesso, e com isso, marcou as cinco décadas seguintes.
Não encare isso como uma defesa do governo JK, mas é constatação de que ele conseguiu seu objetivo de marcar os próximos 50 anos através de suas ações. Assim como Getúlio Vargas já havia feito também, repito, para o bem ou para o mal.
A piora foi que o melhor da sociedade não vai mais para a política, ele vai para o mundo empresarial, a parte mais dinâmica, criativa, não pensa mais nesse tipo de liderança. Hoje ela não é mais o setor que concentra a vocação dos homens e mulheres mais brilhantes.
Surgem boas propostas, há excelentes políticos no Brasil, gente honesta, porém, o campo da política não abriga mais a nata do pensamento. Eles vão ser médicos, administradores, empreendedores, pensadores, escritores, mas não vão ser mais políticos.
Revista Canavieiros: Esse raciocínio então pode ser a justificativa para o redirecionamento da nau tupiniquim para mares mais liberais ou conservadores?
Karnal: Eu acho que o Brasil tem muitas correntes. No Chile, estão protestando nas ruas para que o Estado participe mais, que haja subvenção pública à tarifa do metrô ou aos planos de saúde dominantemente privados no país.
É preciso pensar que aqui há uma parcela expressiva de pessoas que querem o caminho oposto ao liberal. Querem mais Estado, querem mais contratações.
Claro que há ao mesmo tempo uma corrente antiestatal ou pelo menos desconfiada do Estado, que faz parte do pensamento liberal. Para esse grupo, quanto maior a estrutura governamental, mais caminhos há para a corrupção.
Contudo, nele existem muitas contradições como, por exemplo, uma parcela significativa de empresários que declaram sua intolerância a um Estado forte, mas busca juros subsidiados do BNDES.
É difícil existir no Brasil um liberal autêntico, assim como é difícil existir alguém de esquerda autêntico. É muito raro aparecer um indivíduo simplesmente conservador no sentido como Edmund Burk, autor inglês do século XVII, definiu. O conservadorismo sendo a linha de pensamento que desconfia do Estado e da perfectibilidade humana.
Então, no cenário de hoje, temos muitos grupos debatendo se o Estado deveria fazer mais, gente de esquerda querendo mais Estado, gente de direita querendo que ele proíba isso e aquilo. Assim, o que falta ao país é uma escola de pensamento que realmente desconfie do Estado, e não apenas em uma função, mas em tudo, do Bolsa Família até o BNDES, e isso é muito fraco no Brasil.
Revista Canavieiros: Aonde o Brasil estará daqui a dez anos?
Karnal: É muito complicado para um historiador que sabe muito sobre o passado fazer qualquer exercício de profecia. Mas vou me basear em tendências como o processo de internacionalização da economia ser irreversível, para isso ser revertido precisaria acontecer um colapso épico, o que dá para concluir que, para o futuro, quem falar melhor inglês será melhor qualificado.
Significa que, para o futuro, quem pensar em internet, em mercados digitais, em acesso direto a consumidores, estará melhor do que quem não pensa assim.
Os desafios maiores são de perda da referência física, tendência de fácil constatação observando que a maior rede de automóveis no mundo não tem um carro, que é o Uber; a maior rede de hospedagem do planeta, não tem um quarto, que é o Airbnb.
Tem muita gente ainda com o pensamento fixo na ideia de sede, de filiais e isso tudo está ficando no passado. Os conceitos de inteligência artificial estão dominando o mundo todo, mesmo não sendo fácil a implementação de muitos processos.
E há ainda um desafio enorme, previsto por Yuval Harari, nas suas 21 lições sobre o século 21: como incorporar uma massa grande de pessoas inempregáveis? Ou seja, não são apenas desempregados, o que já é um problema, mas não qualificados para qualquer mercado de trabalho.
Os desafios do futuro incluem em como trabalhar em casos iguais aos do Brasil, cuja qualificação profissional é baixíssima. Tirando alguns centros de formação notáveis, temos uma maioria de instituições que não qualificam de fato as pessoas, se tornando esse um dos principais problemas da nossa nação.
Revista Canavieiros: E o Karnal tem alguma pista de como superar esse desafio?
Karnal: Eu gostaria muito, pela minha inclinação política e pessoal, que saíssemos das discussões dos polos, de esquerda e direita, e seguíssemos em frente, falando da eficiência do Estado e não se ele é vermelho ou azul.
Espero ver um chefe de Estado igual ao que eu consigo enxergar em alguns administradores do agronegócio, que ele faça a produção o mais barato possível, com o menor dano ao meio ambiente e o maior acúmulo de produtividade.
Eu não quero saber se ele acredita em São Miguel, se ele é a favor da independência do Estado ou se sua família está sob risco. Eu quero que ele produza.
A nossa ideologia política é burra, não nos faz avançar. Os políticos estão discutindo as suas carreiras, discutem como não ir para a cadeia ao final do mandado, discutem os interesses de suas famílias, de seus amigos. Acho que o Brasil, na média, não estou generalizando, não tem administradores públicos competentes.
E o mais mágico é que nós continuamos resistindo, apesar dessa incompetência, com resultados interessantes da economia brasileira. Estamos sobrevivendo sem administração por um bom tempo, tenho que parabenizar a sociedade privada brasileira.
Hoje nosso caso comprova que tanto liberais radicais, quanto os anarquistas, estão certos. O Estado é danoso. Ou como diria o Reagan ao tomar posse, a solução não é o Estado, ele é o problema.