Mosca-dosestábulos: uma praga que ameaça a produtividade da pecuária e pode parar uma usina

13/10/2023 Noticias POR: Fernanda Clariano

A mosca-dos-estábulos (Stomoxyscalcitrans) é considerada uma das principais pragas da pecuária brasileira, afetando principalmente bovinos, equinos e suínos. Estima- se que as perdas econômicas causadas por essa mosca cheguem a bilhões de reais por ano, devido à redução da produção de leite, carne e couro, além dos custos com controle e tratamento.

Controlar essa praga é um desafio para os produtores rurais, que devem adotar medidas preventivas e corretivas para evitar a infestação.

Para conscientizar os produtores rurais dos prejuízos causados pela mosca-dos-estábulos, os benefícios do seu controle e atualizá-los sobre o que há de mais novo a respeito desse assunto, a reportagem da Revista Canavieiros conversou com a bióloga proprietária da Volare Consultoria Ambiental, Taciany Ferreira de Souza. Confira!

 

Revista Canavieiros: A mosca-dos-estábulos é uma praga oportunista?

Taciany Ferreira de Souza: Sim, a mosca-dos-estábulos (Stomoxyscalcitrans) é uma praga oportunista e de grande capacidade de adaptação. No Brasil tem sido evidenciada nos últimos anos a ocorrência de surtos desta praga em diferentes sistemas de produção, todos eles relacionados à disponibilidade de matéria orgânica vegetal em decomposição. Dentre eles, destacam-se: mistura dos dejetos bovinos (fezes e urina) e as sobras da alimentação dos animais (feno e silagem) nas propriedades pecuárias; áreas de reforma de pastagem com plantio consorciado de espécies de braquiária e forrageiras, principalmente quando associado a maior precipitação pluviométrica; áreas de o sistema de ILP (Integração Lavoura-Pecuária) com braquiária associada aos restos da palhada de plantio direto de culturas anteriores, como o milho e os dejetos bovinos; o uso de adubo orgânico utilizado in natura como a cama de frango, esterco de galinha poedeira e palha de café; a palhada da cana-de-açúcar com aplicação da vinhaça, torta de filtro e borra de vinhaça (sedimento resultante da decantação da vinhaça em tanques e canais de condução) produzidos pelas usinas sucroenergéticas; informações mais detalhadas também estão disponibilizadas em um recente estudo publicado pela Embrapa Gado de Corte, que disponibiliza um compilado dos 50 anos dos “Surtos da mosca-dos-estábulos no Brasil” (Documento 308. ISSN 1983-974X. Junho/2023).

 

Revista Canavieiros: Como um programa de controle da mosca-dos-estábulos deve ser planejado e implementado em um estábulo? E quais as medidas preventivas podem ser adotadas para evitar as infestações?

Taciany: Para a implantação de um programa de controle da mosca-dos-estábulos nas propriedades pecuárias é importante que haja o envolvimento de sindicatos rurais, órgãos competentes e profissionais especializados na área para que possam atuar de forma mais efetiva na orientação das boas práticas de manejo para prevenir a proliferação da mosca-dos-estábulos. Um exemplo disso é o Programa de controle e prevenção de surto da mosca-dos-estábulos no estado de São Paulo, criado a partir da Resolução SAA - 38, de 03/07/2017, que conta com a participação da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Defesa Agropecuária (EDA), CETESB e as Prefeituras Municipais. Dentre as principais medidas para evitar as infestações nos animais, destacam-se a higienização semanal dos locais com acúmulo de dejetos dos animais (fezes e urina) e sobras da alimentação dos animais (feno e silagem), que além de controlar os focos de reprodução da praga, também traz benefícios de bem-estar animal e prevenção de doenças parasitárias.

 

Revista Canavieiros: Quais os métodos de controle da mosca são mais eficientes em propriedades pecuárias?

Taciany: As medidas de controle mais eficientes nas propriedades pecuárias são simples e envolvem o manejo correto dos resíduos orgânicos para eliminação dos focos de reprodução das larvas e o uso de armadilhas de captura da mosca na fase adulta, tais como: limpeza semanal das instalações (cochos, mangueiros e currais), para remoção dos dejetos animais e/ ou restos alimentares; manejo dos resíduos orgânicos: empilhar, cobrir com lona (30-40 dias) até cessar a fermentação (temperatura igual a do ambiente) e usar como adubo; manter totalmente coberto os montes de silagem com lona plástica evitando a exposição do material; controle de moscas com armadilhas - bandeiras azul e preta com inseticida ou cola entomológica - instalação pela manhã ou ao entardecer; instalar no entorno de currais, leiterias e piquetes próximos, com distância de 20 m entre si. Todas essas informações e demais recomendações foram compiladas em um material disponível no link:www.infoteca.cnptia.embrapa.br/handle/doc/1123565

 

Revista Canavieiros: Como é feita a avaliação da gravidade de uma infestação pela mosca em um estábulo?

Taciany: A avaliação do nível de infestação da mosca-dos-estábulos nos animais pode ser avaliada por meio do sistema de monitoramento da flutuação populacional da praga através do uso de armadilha reflexiva e por meio da avaliação in loco do comportamento animal. Como se trata de um inseto hematófago, ou seja, que se alimenta do sangue do animal, a picada dolorosa da mosca-dos-estábulos gera desconforto, causando movimento das patas, cauda e comportamento de aglomeração do rebanho (reboleira). Na literatura científica é possível encontrar estudos que determinam as possíveis perdas de produtividade relacionadas ao ataque desse díptera, sendo considerado um limiar econômico a média de 5 moscas por pata dianteira. Outro estudo verificou que 10 moscas por pata dianteira podem causar uma perda no ganho de peso do animal de 500 g/dia, em um período de 90 dias observa-se perda de 40% o que corresponde a uma média de 53Kg em 3 meses.

 

Revista Canavieiros: O manejo integrado da mosca-dos-estábulos é importante? Quais são as formas de manejo integrado?

Taciany: Sim. Apenas com o manejo integrado da mosca-dos-estábulos é possível atingir o nível de convivência com a praga. Para começar, o treinamento da equipe de campo é muito importante, visto que ainda há uma restrição de conhecimento técnico sobre a mosca-dos-estábulos. Em seguida a realização de diagnóstico ambiental nas áreas afetadas, que se trata de levantamento in loco por amostragem direcionada para a identificação de ambientes favoráveis ao desenvolvimento da mosca para a elaboração de um plano de ação específico para cada caso. A partir das informações geradas é definido o sistema de monitoramento da flutuação populacional da praga, ferramenta imprescindível para quantificar semanalmente o nível de adultos capturados nas armadilhas reflexivas e, assim, direcionar de forma estratégica as ações de prevenção e controle de surtos. Para manutenção da praga em níveis aceitáveis é importante que haja um trabalho em parceria com os setores envolvidos. Somente o trabalho preventivo e a parceria entre as partes envolvidas tornarão possível atingir o nível de convivência com a mosca-dos-estábulos.

 

Revista Canavieiros: Existem diferenças sazonais no controle da mosca-dos-estábulos? Se sim, como essas diferenças afetam as estratégias de controle?

Taciany: Sim. E mbora a s azonalidade p ossa favorecer ou não a abundância da praga nos ambientes, esta variável ambiental não é determinante para ocorrência ou não de surtos. Na realização da minha tese de doutorado e prestação de serviços ao longo de uma década de trabalho, foi possível observar tendência de comportamento bimodal da flutuação da mosca-dos-estábulos. Este comportamento refere-se à ocorrência de dois picos populacional no ano, sendo o primeiro em junho/julho e outubro/novembro. Cabe ressaltar que o aumento populacional está relacionado principalmente às condições de manejo dos subprodutos agrícolas, fertilizantes orgânicos e sistema de produção pecuária. Entretanto, o período chuvoso é considerado um fator agravante em virtude do aumento de umidade nos substratos orgânicos, sendo fundamental o trabalho de monitoramento semanal da praga e adequação do protocolo com a intensificação das ações, sempre que forem identificados pontos em nível de alerta e alto, sendo um trabalho mais eficiente e de menor custo.

 

Revista Canavieiros: Este foi um ano que choveu um pouco mais, o que isso implica?

Taciany: Diante da maior p recipitação pluviométrica já registrada em alguns estados do país, apesar de não ser determinante para surtos, proporciona um aumento populacional da praga. Através do nosso exclusivo sistema de monitoramento e demais ferramentas tecnológicas para consultoria ambiental em usinas de cana-de-açúcar e propriedades pecuárias, foi possível identificar um aumento da praga já nessa primeira quinzena de setembro, permitindo já atuarmos nas adequações dos protocolos das usinas para redução de riscos de surtos. Entretanto, como observado também em 2022, devido ao maior índice pluviométrico, embora tenha sido observado o aumento da abundância da mosca, a intensidade deste aumento foi proporcional aos esforços de execução das boas práticas preventivas e corretivas de manejo recomendadas. A correlação inversamente proporcional à aderência ao protocolo de tratamento preventivo recomendado, ou seja, quanto menor a aderência, maior é a abundância da praga nas áreas de influência.

 

Revista Canavieiros: Quais são os desafios ao tentar controlar moscas em estábulos?

Taciany: São inúmeros os desafios quando falamos da alta capacidade de adaptação e oportunismo da mosca-dos-estábulos de reprodução em diferentes sistemas de produção. O primeiro desafio envolve a falta de conhecimento técnico especializado, em seguida o alinhamento entre a realização das medidas mitigatórias recomendadas e a disponibilidade de recursos (pessoas, insumos e equipamentos agrícolas) para que haja resultados satisfatórios e, por fim, envolvimento dos setores envolvidos para que haja efetivamente um trabalho em parceria focado na qualidade e no tempo correto das medidas mitigatórias.

 

Revista Canavieiros: Há registros de surtos da mosca-dos-estábulos no Brasil associados às usinas de cana-de-açúcar?

Taciany: Sim, a partir da modernização da colheita mecanizada da cana-de-açúcar nas usinas associados ao avanço do processo de fertirrigação para adubação das lavouras com a vinhaça, forneceu as condições ambientais favoráveis ao desenvolvimento massivo da mosca-dos-estábulos nas respectivas áreas. Segundo o recente estudo realizado pela Embrapa, entre os anos de 2001 a 2010 foram registrados 40 episódios de surtos da mosca-dos-estábulos relacionados às usinas sucroalcooleiras, já entre os anos 2011 a 2020 este número subiu para 436. Cabe mencionar que um dos fatores para aumento exponencial e alarmante de ocorrências de surtos se deve à expansão do setor sucroenergético para regiões que predominavam a pecuária.

 

Revista Canavieiros: O surto da mosca-dos-estábulos nas usinas tem a ver com o que? E quais os danos pode causar no setor sucroenergético?

Taciany: Os surtos da mosca-dos-estábulos nas usinas estão relacionados principalmente à escala e disponibilidade de matéria orgânica vegetal em decomposição (palhada umedecida com vinhaça) favorável à postura, desenvolvimento e emergência da praga, bem como os reservatórios e canais de condução de vinhaça distribuídos nas lavouras. Na área industrial, o principal ponto de desenvolvimento da praga é o pátio de mistura de torta de filtro e fuligem. Visto isso, a Volare Consultoria Ambiental desenvolveu e está lançando nesta reportagem um material de apoio às equipes das usinas de “Boas práticas para o controle da mosca-dos-estábulos – Usina Sucroenergética” contendo as principais recomendações técnicas relacionada ao manejo dos ambientes propícios ao desenvolvimento da praga (acesse o QRCode e tenha acesso ao material gratuito).

 

Revista Canavieiros: Recentemente você comentou em uma apresentação que a mosca-dos-estábulos não causa danos econômicos direto de produtividade do canavial, mas pode parar uma usina. Poderia comentar?

Taciany: Apesar de não causar danos diretos na produtividade dos canaviais, esta praga faz com que as usinas tenham prejuízos indiretos para reduzir conflitos com os pecuaristas das proximidades que estejam sendo afetados. Os conflitos entre esses dois importantes setores produtivos para o país podem ocorrer quando atingir níveis críticos de infestação nos rebanhos e impactos socioambientais que passam a envolver denúncias, atuação de órgãos fiscalizadores com riscos de autuações, processos judiciais, atuação do Ministério Público, exposição negativa da marca do grupo por meio de divulgações nas mídias sociais e televisivas e, em alguns casos, chegam a ter paralisação de pecuaristas na entrada das usinas impedindo o acesso de caminhões de cana no pátio industrial, travando o processo de moagem para produção do etanol e o açúcar.

 

Revista Canavieiros: Quais as tecnologias estão sendo empregadas nas áreas fertirrigadas para o controle da mosca-dos-estábulos?

Taciany: Atualmente trabalhamos com várias ferramentas para o controle e monitoramento da mosca-dos-estábulos, tais como: acompanhamento remoto por imagens de satélite para avaliação das áreas de fertirrigação; avaliação in loco com voo de drone para averiguar a qualidade operacional da aplicação de vinhaça; monitoramento da dinâmica populacional semanal da mosca-dos-estábulos com uso de armadilhas reflexivas com envio dos alertas em modelo de mapa de calor e gráficos contendo os dados quantitativos para tomada de decisão.

 

Revista Canavieiros: Há um monitoramento populacional da mosca? Como ele é feito?

Taciany: Sim, para o acompanhamento da dinâmica populacional são instaladas armadilhas reflexivas que refletem a luz do sol num comprimento de onda específico que atrai os adultos e que ficam aderidos na cola entomológica desta armadilha. A distribuição das armadilhas é realizada principalmente a partir do plano de aplicação da vinhaça (PAV), localização das fazendas pecuárias e demais ambientes de importância. Nossa equipe realiza a identificação e contagem da mosca-dos-estábulos e a partir dessa quantificação é gerado o alerta semanal, composto pelo mapa de calor e os gráficos contendo os critérios (nível baixo, alerta, alto e crítico) estabelecidos pela consultoria que são enviados para o cliente. O mapa de calor é uma ferramenta que permite identificar os locais de maior incidência da mosca-dos-estábulos para que haja direcionamento estratégico das ações de prevenção de surtos. Cabe ressaltar que os critérios utilizados para quantificar o nível populacional da praga são específicos para cada usina, levando em consideração o tamanho da área que compõe o PAV, a distância entre os ambientes, a quantidade de propriedades pecuárias que será monitorada e demais variáveis técnico-científicas validadas no decorrer dos anos. Deste modo, essa ferramenta é fundamente na prevenção de surtos da mosca-dos-estábulos, uma vez que conseguimos atuar de forma pontual e estratégica para atingir o alvo que são os locais de maior infestação da praga, propiciando redução de custo e resultados satisfatórios.

 

Revista Canavieiros: Em relação a questão social e mudança na rotina do produtor, qual o impacto social dessa praga para a comunidade do entorno?

Taciany: Os surtos da mosca-dos-estábulos geram impactos que vão além dos prejuízos econômicos, ocasionando importantes mudanças na rotina dos produtores e na periferia de algumas cidades. Durante as visitas técnicas pude vivenciar e receber vários relatos de produtores que tiveram que abandonar suas atividades de criação de gado em decorrência do impacto financeiro e de qualidade de vida. Dentre exemplos de mudanças de rotina está a prática de ordenha do leite, que precisa ser antecipada para que o serviço seja finalizado antes do amanhecer devido ao intenso ataque nos animais logo no início da manhã, em virtude do hábito diurno da praga. São diversos os relatos de mortalidade de animais como bezerros, suínos e até mesmo os cães de estimação, fatores impactam no aumento de estresse, ansiedade e até mesmo depressão. Nas periferias das cidades são mais comuns os relatos de moscas nas paredes das residências e feridas nas orelhas dos cães em virtude da alta infestação.

 

Revista Canavieiros: Quais são os desafios dessa praga? Controlar surto é mais caro do que prevenir?

Taciany: No contexto geral, certamente o maior desafio no combate à mosca-dos-estábulos ainda é a falta de conhecimento tanto da praga quanto das estratégias de prevenção e controle. Outro desafio está relacionado à limitação de recursos disponibilizados para essa finalidade para que as medidas sejam realizadas no tempo correto e com a qualidade necessária. Por se tratar de um agroecossistema altamente favorável a multiplicação da mosca-dos-estábulos associado à sua alta capacidade de dispersão, sem dúvidas o trabalho preventivo além de apresentar um menor custo permite uma melhor gestão nas ações. Um dos nossos clientes, usina localizada no estado de Minas Gerais, reduziu seus custos com a mosca-dos-estábulos em mais de 65% entre o primeiro e o terceiro ano de trabalho, atingindo o nível de convivência com a praga sem relatos de surtos nos últimos quatro anos, por meio do contínuo trabalho de monitoramento e execução de boas práticas preventivas.

 

Revista Canavieiros: Para finalizar, hoje como está o tema mosca-dos-estábulos no contexto nacional e internacional?

Taciany: O tema mosca-dos-estábulos no contexto nacional está mais esclarecido que há uma década, considero que os desafios ainda são significativos. Inicialmente surtos da mosca-dos-estábulos tinham maior relação com condições de manejo consideradas até mesmo precárias em alguns casos, porém tenho observado que a praga está se adaptando aos sistemas agropecuários, fato que requer maior acompanhamento técnico especializado para conter aumentos súbitos das populações. As pesquisas no âmbito nacional e internacional são disponibilizadas envolvendo principalmente estudos com produtos químicos, biológicos, técnicas de manejo, entre outros. Entretanto, maiores informações científicas e tecnológicas são necessárias para os atuais desafios do Manejo Integrado da mosca-dos-estábulos. Também considero importante maior envolvimento de sindicatos rurais, associações representativas do setor de bioenergia, universidades, órgãos competentes e profissionais especializados na área para atuarem de forma mais efetiva na orientação para mitigar a proliferação da mosca-dos-estábulos em todos os setores envolvidos. Por fim, como já mencionado anteriormente, programas de prevenção de surtos existente no estado de São Paulo há cinco anos, regido pela Resolução SAA 38, de 03 de julho de 2017, requer uma atualização mediante os avanços das informações; podendo assim, subsidiar também a implantação nos demais estados afetados com registros de surtos como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás.