O retrato de uma bacia leiteira

Associativismo, trabalho em família e muito sacrifício. Se manter no leite não é tarefa para os fracos

Por: Marino Guerra

O termo bacia leiteira significa uma região formada por várias propriedades agrícolas que se dedicam à atividade. Geralmente localizadas na mesma região, a produção do leite é entregue para apenas um processador (laticínio) ou a um mesmo centro de consumo final.

Se tal definição fosse levada ao pé da letra, ela estaria parcialmente correta ao dizer que em Santa Rita do Passa Quatro há uma bacia leiteira. Isso porque embora tenha uma produção significativa (cerca de 100 produtores que tiram uma média de 30 mil litros diários), o destino do leite é bem variado, pois além da briga entre os laticínios mais próximos, também surgiu recentemente a produção orgânica.

Contudo, ao olhar com mais detalhe a movimentação dos produtores, parece sensato identificar a produção local como uma “bacia leiteira” pela organização associativista que ainda sobrevive ali e também pelo preço ser praticamente uniforme.

Para chegar a essa conclusão, a reportagem da Revista Canavieiros percorreu as curvas sinuosas que compõem a zona rural da estação climática para conhecer as virtudes dos produtores de uma atividade que, definitivamente, não é para os fracos.

A primeira história é da família Visioli, onde o pai Nelson e os irmãos Wagner, Douglas e Nelson Rodrigo trabalham numa operação com cerca de 50 vacas lactantes que entregam diariamente uma média de mil litros.

Voltando à atividade, em 2012, após 12 anos na citricultura, a família iniciou o trabalho através da compra de 30 vacas.

Hoje, com cerca de 120 animais divididos entre as raças Holandês e Girolando, Wagner conta que o objetivo é trabalhar na melhoria genética para atingir um plantel com a totalidade de holandesas, já que a raça produz por mais tempo e permite que o bezerro seja retirado logo no primeiro dia após o parto (o que resulta em mais leite).

Sem nenhum funcionário, os irmãos executam todas as tarefas, que vão desde as duas ordenhas (a primeira às cinco horas da manhã e, a segunda, às três da tarde) que acontecem todos os dias, passando pelo trabalho que envolve os cuidados demandados pelos animais (alimentação, vacinação, entre outros) até o cultivo da lavoura de milho que será destinada à silagem. Aqui cabe o comentário de que 100% da alimentação é feita no cocho.

“Quando é o dono que toma conta, como aqui, se o bezerro rejeita uma mamada, já damos a injeção na hora e depois de duas horas ele já está com o apetite restabelecido”, disse Wagner, sobre um dos motivos de não ser tão simples a inserção de funcionários na operação.

Além, é claro, da atual remuneração da atividade, na qual o governo, para manter os preços baixos, regula a demanda do produto abrindo o mercado para vizinhos do Mercosul.

Perante essa conjuntura e para sobreviver, os produtores acabaram se reunindo numa associação que organiza a demanda de insumos (farelo, soja, fubá e sal mineral), executando uma cotação mensal dentre os principais fornecedores, sendo a Copercana uma participante ativa.

Assim, no fim do século, foi criada a Associação dos Produtores do Barro Preto (bairro rural de Santa Rita do Passa Quatro), uma união de produtores leiteiros que no princípio tinha o objetivo de organizar dois pools, um de compra e outro de venda.

Para entender melhor a dinâmica da entidade, a reportagem foi até o Sindicato Rural da cidade e foi recepcionada pelo médico veterinário Sergio Donizetti Carnielli, presidente das duas instituições.

Ele disse que hoje a entidade reúne cerca de 20 produtores que fornecem aos laticínios quase quatro mil litros por dia. Esse grupo, formado por pequenos e médios produtores, se reúne uma vez por mês para definir qual será a demanda de insumos e fazer a cotação. A empresa que passar o menor valor ganha.

Segundo o dirigente, a entidade também é importante porque consegue saber, de forma antecipada e por parte dos laticínios, o preço a ser pago, o que, além da sensação de importância dada especialmente aos produtores menores, é uma informação crucial para o associado definir quanto poderá investir naquele período.

Uma terceira vocação do grupo é a transferência de conhecimento através da realização de palestras e cursos com conteúdo técnico, feitos através da parceria com entidades do calibre de Sebrae, Embrapa e Ufscar, cujo o objetivo é o de aperfeiçoar os associados sob o ponto de vista técnico.

Contudo, Carnielli fala que o criador, especialmente o menor, não pode se acomodar, ou seja, ele precisa crescer com qualidade e para isso deve buscar a ajuda de profissionais, como a consultoria técnica que é oferecida pela Copercana através do seu time de veterinários.

Foi a busca por conhecimento que fez o produtor Sidnei Teodoro de Oliveira optar por iniciar uma produção de leite orgânico no ano passado.

Com o apoio da Embrapa, através do Programa Balde Cheio, em 2018 ele decidiu mudar sua rotina de serviço que vinha crescendo desde 2011 e assinou o contrato com um laticínio, assumindo o compromisso de produção do produto especial.

Ele explica que para se enquadrar nas regras, precisou passar por um período de adaptação de 12 meses onde teve que submeter, tanto os seus animais como a sua roça (também usada para produzir ração) por um processo de eliminação de qualquer vestígio químico.

Assim, tanto a cana como o sorgo plantados no sítio de 21 hectares que, diga-se de passagem, é arrendado, são tocados seguindo as regras para a certificação orgânica.

Na alimentação há alguns detalhes. Dentre eles, o principal é que como o mercado não consegue suprir toda a alimentação com produtos orgânicos, o produtor pode compor a dieta das vacas em 15% com os convencionais, dos quais geralmente se tem a soja, porém, alguns criadores estão optando pela levedura por ser mais completa sob o ponto de vista nutricional.

Quanto ao tratamento das vacas em caso de doença, é permitido o uso de até duas terapias químicas por ano. O restante só através da homeopatia e, caso não tenha sucesso, é preciso tirar a vaca do plantel por seis meses após o término do uso dos remédios.

Levando em consideração essa regra, o produtor conta que prefere a raça Girolando por ser mais rústica em relação às doenças, se comparada com a Holandesa.

Ainda dentro deste assunto, ele frisa que o principal problema inicial foi o controle do carrapato, mas, com o tempo, passou a entender como realizar o tratamento homeopático e hoje já administra bem a questão.

Outro detalhe da produção orgânica é que o bezerro precisa ficar com a vaca até o seu completo desmame, o que ocorre entre oito e nove meses de vida.

A rotina de trabalho não é tão diferente dos outros sítios leiteiros. Lá também não há funcionários e toda a tarefa é feito por  Oliveira e sua esposa, Fernanda Aparecida Batista Teodoro de Oliveira, com a ajuda dos dois filhos, Leonardo Sidnei Teodoro de Oliveira e Ana Júlia Teodoro de Oliveira, que dividem a lida no campo com os estudos.

Às cinco da manhã é realizada a primeira ordenha do dia. No inverno, após a retirada do leite, o casal vai para o corte da cana para fazer a silagem que será a base da ração servida no cocho. No verão, as vacas são tocadas para o pasto, onde é cultivado o capim-mombaça, inteiramente orgânico.

O vigor do pasto realmente impressiona, tanto pelo tamanho quanto pela intensidade do verde das folhas, o que torna fácil acreditar quando o produtor diz chegar a alimentar 13 cabeças por hectare.

Às 15 horas acontece a segunda ordenha e, após, Oliveira conta que faz os tratos do gado e da roça até o horário que for preciso. “Têm muitos dias em que estou em cima do trator manejando a roça às dez horas da noite”, afirma.

Quando perguntado sobre a produtividade e remuneração, o criador conta que conseguiu manter a sua produção diária no mesmo patamar em relação ao último ano que trabalhou de maneira convencional (650 litros).

A respeito do custo de produção, seus cálculos variam entre 35% a 40% adicionais. Contudo, os custos de silagem orgânica são cerca de 25% menores. “Se for comprar toda a ração, que é cara, a operação torna-se inviável. Para viabilizar, é preciso produzir na propriedade”, completa Oliveira.

Nesta conta ainda entra o custo de auditoria, que engloba a visita de uma empresa mensalmente e da certificadora a cada 6 meses, gerando um débito médio de R$ 10 mil por ano.

O valor pago é 50% maior em relação ao índice Cepea-Esalq-SP. Porém, nesse cálculo é acrescida uma quantia referente ao programa de fidelidade do laticínio. Nele, ao completar um ano de fornecimento, o produtor recebe uma bonificação que é duplicada, caso permaneça por mais 12 meses, e triplicada se cumprir todo o contrato que tem duração de três anos.

Assim, se tudo correr bem, Oliveira estima um acréscimo de quase R$ 0,60 no litro de leite oferecido.

Num cálculo de padeiro, se o convencional for cerca de R$ 1,50 o litro, quem produz o orgânico receberá R$ 1,50 + R$ 0,75 + R$ 0,60, gerando uma receita bruta de R$ 2,85 por litro.

Diante das histórias contadas, a conclusão é de que sendo de maneira convencional ou orgânica, não é nada fácil manter-se de pé no mundo do leite. Mas o relato final de Oliveira dá o recado: "Prefiro olhar pelo lado positivo. Minha profissão é uma das poucas que dá serviço todos os dias do ano".