Retratos resilientes

13/05/2022 Noticias POR: MARINO GUERRA


Família Fugita, Tomeo é o segundo da direita para a esquerda, numa das primeiras safras colhidas em Monte Alto-SP

 

Qual é a relação entre um sonho e uma fotografia? Se partir da ideia que um retrato nada mais é que o congelamento de microfragmentos do real e que a sua execução por centenas de vezes por segundos se tem um filme.

Porém, todos sabem que a realidade depende do ponto de vista, ou ângulo da câmera, e que ela pode ser maquiada e encenada conforme o objetivo daquele que dirige, capta ou edita as imagens coletadas.

E o que são os sonhos senão a exibição de um filme (milhares de fotografias) que mistura aquilo que foi vivido (verdades subjetivas), perante a interpretação das imagens captadas pelos olhos e sons recebidos nos ouvidos, com o departamento de imaginação do cérebro, que trabalha no sentido de transmitir suas vontades dos modos mais criativos possíveis.

Em Monte Alto, que também é conhecida como Cidade Sonho, ao conhecer a história de um dos maiores polos de produção de cebola do país, se consegue interpretar com exatidão a frase: “o sonho que se torna realidade”, ou seja, a mistura dos ensinamentos do passado com a vontade do presente faz desse microsetor em extensão, que encontra suas lavouras no meio de canaviais, serra e pomares, fundamental para a região sob o ponto de vista social e econômico.

A dificuldade realiza sonhos

A história da família Fugita na cebola tem seu primeiro capítulo, o que realmente fez a diferença para ela se tornar a maior produtora do Brasil, depois da chegada de Tomeo, vindo do Japão, em 1934, ou na primeira colheita em Monte Alto, em 1939.


Um dos sonhos concretizados pelos Fugita foi a ampliação da produção de cebola em Minas Gerais

 

“Para conseguir comprar o sítio no bairro de Anhumas, onde era possível o cultivo da cebola por ser uma área de brejo, meu avô pegou dinheiro emprestado com um irmão, mas como sua dedicação tinha que ser quase que totalmente voltada para a roça, ele acabava não fazendo boas negociações na venda da produção, o que levou quase vinte anos até que o empréstimo fosse totalmente quitado”, contou Fabrício Fugita, representante de terceira geração, sócio do grupo e que atua diretamente com o setor de produção.

Não só por assistir, mas trabalhar na árdua lida diária do pai, com pouquíssimo progresso e ainda ver algumas conquistas se desmoronarem, como o incêndio no galpão do sítio ocorrido em 1957, Kogi foi obrigado a assumir as operações do sítio aos 17 anos, em 1961, em decorrência de problemas de saúde do Tomeo. Dois anos se passaram e então veio o capítulo inicial que gravou o nome Fugita no hall dos mais eficientes do agronegócio nacional.

Certa vez, Kogi passou um dia inteiro plantado na porteira à espera de um intermediário que havia combinado para comprar cebola: “Meu pai conta que ventava muito e a cada rajada de poeira que atingia o seu rosto aumentava a sua determinação em mudar aquela sofrida realidade”, conta Fabrício. Por fim, o comprador apareceu no final da tarde com uma proposta absurda: “Nesse dia ele jurou que nunca mais venderia para um intermediário”.

Passados alguns dias do ocorrido, ele pegou o trem na estação em Taquaritinga com direção à a capital do estado, mais especificamente na região cerealista que até hoje mantém a atividade na rua Santa Rosa, bairro do Brás.

Lá vendeu sua produção por um valor cinco vezes melhor que o oferecido pelo atrasado comprador. De posse dos contados, na colheita, Kogi pelo menos uma vez por semana subia em seu cavalo, andava mais de dez quilômetros, no trajeto incluía a subida e depois descida da serra, para chegar até o único telefone público da cidade e lá fazer as negociações de venda.

Safra a safra, com a habitual dedicação acrescida pela coragem para inovar, a prosperidade começou a derrotar a adversidade e a realidade se modificou. Um exemplo dessa fase foi na compra do Sítio Santa Maria, localizado em terras mais altas, onde ninguém havia tido a audácia de montar uma lavoura ceboleira.

“Como a energia elétrica havia chegado, meu pai comprou aspersores para montar o sistema de irrigação, na época ele foi desacreditado, mas o resultado da colheita mostrou quem estava certo”, conta Fabrício.


Kogi com a esposa, Emiko Hori e os filhos Danilo e Fabrício

 

No início dos anos 70 veio a parceria com a Unesp de Jaboticabal na realização de ensaios que testaram, pela primeira vez, o uso de herbicidas numa lavoura de cebola. Somente nesse período, em pouco mais de 15 anos, ele transformou uma produção de 90 toneladas por ano herdada do pai em cinco mil toneladas.

No final da década foi inaugurado o Centro de Abastecimento Fugita que hoje possui uma estrutura de armazenamento (refrigerado) robusta, o reconhecimento como o maior produtor do Brasil nos anos 80 (nessa época ele chegou a ter mais de 50 meeiros) e, já nos anos 2000, a abertura de novas lavouras em Minas Gerais, a primeira em Santa Juliana, Triângulo Mineiro (Chapadão de Uberaba) e uma segunda, no ano passado, no extremo norte do estado, em Taiobeiras (260 km de Montes Claros).

A operação mineira responde hoje por 90% da área total cultivada ou 285 hectares (em São Paulo há mais 40 hectares) e se caracteriza por um plantio em semeadura direta, ao contrário do que se pratica em Monte Alto, onde é feito o transplante de mudas.

As estratégias distintas são definidas através de um minuciosos planejamento e conhecimento da cultura, como explica Fabrício: “A escolha pelo método de plantio é feita através do conhecimento do ambiente de cada área, como condição do solo, topografia, temperatura, entre outros fatores. É preciso considerar a quantidade de sementes utilizada, o sistema de semeadura utiliza o dobro, e a relação produtividade versus qualidade (cebolas consideradas caixa três, ou seja, tamanho médio, são melhor remuneradas)”.

Um ponto crucial na tomada de decisão da Fugita é o fato de conseguir ofertar o produto pelo maior tempo possível. Para isso o plantio é iniciado no norte de Minas na segunda quinzena de dezembro; enquanto que no triângulo ele é feito a partir da segunda metade de janeiro, devido ao fato de serem áreas planas e maiores ambos são realizados através da semeadura direta.

No terço final de fevereiro é a vez de Monte Alto, pelo transplante de mudas, justificado pela declividade e tipo de solo. Hoje a capacidade de produção do grupo é de 27 mil toneladas por ano.


Cebola próxima da colheita plantada no sistema de semeadura direta, maior produtividade porém com menor padronização de tamanho

 

Dessa forma, a colheita começa em abril e pega um bom período de preços antes da safra paulista começar no final de junho, quando a oferta no estado aumenta e os valores caem. Outro ponto é que a oscilação do mercado conforme a época do ano justifica o investimento em armazenagem realizado pelo grupo, pois conforme o segundo semestre ganha corpo e as cebolas começam a chegar de mais longe (regiões Sul e Nordeste) a margem volta a subir.

Questionado se o custo de manter refrigerado, o produto era menor que o frete de outros estados, o executivo mostrou que até nos anos de energia mais alta sempre conseguiu ser competitivo, e que recentemente investiram na geração de energia através de placas solares, o que a longo prazo, vai reduzir ainda mais essa conta.

Toda essa estratégia para poder valer a regra que começou lá nos anos 60 e até hoje está ativa, tanto que hoje a empresa fornece para mais de trinta redes, entre supermercados, atacadistas e hortifrútis, contudo hoje em dia o negócio vai muito além da relação de preço. “Muitos clientes exigem a rastreabilidade e para se manter com as portas abertas as certificações são fundamentais”. Fabrício se refere aos selos Global Gap, Global Markets APAS, 2030 Today (Selo ODS Sustentável da ONU) e Alimento Seguro (grupo Produtores do Bem), que a Fugita detém.

Fora o bicampeonato (2020 e 2021), e no corrente ano é finalista, do prêmio Rama (Programa de Rastreamento e Monitoramento de Alimentos) oferecido pela Abras (Associação Brasileira de Supermercados). Que consiste no reconhecimento dos produtores de FLV (frutas, legumes e verduras) reconhecidos pelas suas boas práticas através da reunião de informações que permite orientar o mercado sobre a produção de alimentos de qualidade.

Sobre o futuro, Fugita acredita que é preciso pensar no aumento do consumo de cebola do brasileiro, para justificar sua visão, ele mostrou números. Enquanto o brasileiro consome em médio 6 quilos, a média mundial é de 11 quilos em doze meses.

“Temos um potencial de crescimento enorme em todos os produtos FLV, para se ter ideia o brasileiro consome metade do mínimo que é determinado como uma dieta saudável. Para mudarmos esse cenário, é necessário uma força tarefa através de um conjunto de ações públicas e privadas para melhorar a qualidade da alimentação da população, mas por outro lado, no caso da cebola, trabalhamos na diversificação da prateleira”, disse Fugita.

O executivo se refere dos sete tipos de cebola que a empresa oferta, são eles: Cebola Branca, indicada para receitas naturais, sopas e caldos; Cebola Roxa, com uso para saladas, ceviches e lanches gourmet; Cebola para Tempero, utilizada em refogados e temperos; Cebola Suave, recomendada em saladas, entradas frias e pratos mais delicados; Cebola Colossal, vai bem empanada, recheada e na churrasqueira; Cebola para Conserva, para fazer o tradicional aperitivo e as Cebolas Selecionadas, para quem busca qualidade na sua versão original.


Fugita aposta na variedade de tipos para aumentar o consumo de cebola no Brasil

 

Talvez a poeira na cara traga a sabedoria necessária para entender o mecanismo de um mercado, se adequar e prosperar nele. Basta ter coragem para modificar a situação.

Ceboleiro Raiz

A produção agropecuária brasileira é vigorosa não só por causa dos grandes produtores, lógico que esses são importantes, porém há um exército de pequenos e médios que de um jeito mais raiz de se produzir, com a mão na terra, montado no trator e dividindo o tempo comprando os insumos e vendendo a produção são responsáveis por uma boa fatia (segundo o censo agropecuário a agricultura familiar responde por 25% de toda produção agrária, enquanto que os médios produtores cultivam em aproximadamente 22% da área) da trilhardária geração de renda que faz do agronegócio a locomotiva da economia brasileira.

Na cebola, um exemplo da eficiência dessa faixa de agricultores vem da família Garbin, onde os irmãos Aparicio, Antônio e Germano são a segunda geração de uma produção, iniciada em 1951 e que resiste aos anos difíceis e se fortalece nas safras boas, pautada no capricho e cuidado em cada detalhe do manejo.

Aparicio Garbin Filho, que divide a roça com a presidência do Sindicato Rural de Monte Alto, contou que o cultivo da cebola sempre fez parte da rotina da família, mas houve épocas que não foi o protagonista, como na década de 60, quando um dos irmãos de seu pai foi para São Paulo montar uma banca no Mercado Municipal para vender mamão.

Ele recorda que o cultivo da fruta foi a principal atividade até o início dos anos 70, quando o mosaico dizimou a produção da região, então a atividade na propriedade virou a chave para a cebola, especialmente com a chegada da energia elétrica, que permitiu levar a água até o alto do “espigão” e com isso montar os canteiros em nível.

A instabilidade no mercado é algo histórico, porém assim como há safras extremamente ruins, e 2021 foi uma delas, também tem temporadas muito boas. Das positivas, Garbin não esquece o ano de 1985, quando em decorrência de uma quebra na produção nordestina o quilo estava mais alto que do filet-mignon: “Naquele ano conseguimos comprar uma caminhonete D-20 zero quilômetro com 300 sacos de cebola”.

Sobre os manejos adotados, assim como os Fugita, para o perfil agronômico de Monte Alto o plantio é realizado 100%, cerca de 40 hectares, através do transplante de mudas, além dos três irmãos, eles contam com o apoio de outros três meeiros, todos com pelo menos 10 anos de parceria.


O produtor Aparicio Garbin ao lado do RTV da Copercana em Monte Alto, Leonardo Bighetti

 

Tamanha experiência e atenção gera resultados, como a média de “caixa 3” (tamanho melhor remunerado) próxima dos 90%, a média do município é 70%, conquista atribuída a dois fatores:

“É preciso ter acompanhamento diário, comparo a cebola com a produção de leite, onde todo dia ele precisa ser retirado da vaca”. Um segundo ponto é na adoção de tecnologia, principalmente voltada aos insumos, e essa questão é a que martela a cabeça deles, pois com a subida nos preços de tudo, ele estima que plantou com R$ 36 mil por hectare em 2021 e em 2022 a conta será de algo em torno de R$ 55 mil, somado ao acréscimo dos preços fracos do ano passado, essa colheita vai exigir muito cuidado na hora de comercializar a mercadoria.

Feita para os “intermediários” eles trabalham com cerca de 15 profissionais que enxergam como primordiais na operação por serem os que escoam a produção, inclusive por carregar no campo. “O mercado de cebola é baseado no preço do dia, ou seja, ele alterna conforme a relação de oferta e procura. Aqui meu irmão concentra todas as negociações e ao longo dos 90 dias da colheita esperamos as ofertas dos compradores e conforme nossa percepção e também possibilidade, seguramos um pouco mais (segundo o agricultor é possível manter em campo até cinco dias pós-colheita) para fechar na esperança de uma valorização”, explica Garbin.

Quando questionado sobre qual conselho daria para quem deseja começar a trabalhar com essa cultura, ele destaca dois fatores. O primeiro é estar numa região tradicional, isso porque como se trata de um produto que precisa ser comercializado rapidamente, estar longe da concorrência dos compradores gera uma vulnerabilidade perigosa na hora de negociar. A segunda é começar pequeno para ir conhecendo os detalhes da lavoura que tem seu custo de produção altíssimo.

Por fim, Aparicio fez um resumo no qual evidenciou o paradoxo área versus renda que da cultura em Monte Alto: “Se dividir a área rural do município encontramos 10 mil hectares com cana, 8 mil de serra, 3,2 com manga, 2,8 com limão e apenas mil com cebola, porém esse espaço sustenta cerca de 120 famílias produtoras, sem contar os meeiros, colaboradores, e profissionais envolvidos com a cadeia, como revendedores de insumos e compradores. Daí dá para mensurar a importância da atividade”

Os retratos, gastos e sem cores, resistem na forma de ensinamento passados por pelo menos três gerações. E neles, além da forma e valor do trabalho, também são transferidos valores que a humanidade está num ritmo acelerado de extinção, os familiares, por isso que Monte Alto, assim como toda cidade com DNA agropecuário, prospera.


Sistema de transplantio: Mudas são cultivadas em canteiro para depois serem desdobradas (área ao fundo que está sendo sulcada)