Um novo olhar sob o solo

Agricultura POR: Fernanda Clariano

ENTREVISTA: Ieda de Carvalho Mendes - Pesquisadora da Embrapa Cerrados

O Brasil conta com uma agricultura de ponta, que quer ser reconhecida cada vez mais não só pela sua capacidade de produzir comida, carnes e fibras, mas também por conseguir isso respeitando o meio ambiente. Uma tecnologia desenvolvida pela Embrapa Cerrados é a mais nova aliada para a sustentabilidade da agricultura brasileira. Com ela, o agricultor pode monitorar a saúde do seu solo, sabendo exatamente o que avaliar, por que avaliar, como avaliar, quando avaliar e, principalmente, como interpretar o que foi avaliado.

Para saber sobre essa tecnologia chamada de bioanálise de solo, a reportagem da revista Canavieiros entrevistou a pesquisadora da Embrapa Cerrados, Ieda de Carvalho Mendes. Confira!

Revista Canavieiros: A Embrapa Cerrados lançou recentemente uma tecnologia inovadora, que avalia a saúde do solo não só na parte química, mas também biológica. Explique um pouco sobre essa nova tecnologia, por favor.

Ieda de Carvalho Mendes: A tecnologia Embrapa de bioanálise de solo (BioAS) agrega o componente biológico às análises de rotina de solos e tem como base a análise das enzimas arilsulfatase e a glicosidase, associadas aos ciclos do enxofre e do carbono, respectivamente. Solos saudáveis são os biologicamente ativos, produtivos e resilientes, que toleram melhor problemas de falta de chuva, promovem a saúde das plantas, pessoas e animais e preservam a qualidade ambiental, proporcionando, entre outros benefícios, o sequestro de carbono, o armazenamento e infiltração de água, a biorremediação de pesticidas e a mitigação da emissão de gases de efeito estufa.

Revista Canavieiros: Essa tecnologia possibilita o agricultor saber se seu solo está saudável ou doente?

Ieda: A BioAS é como se fosse um exame de sangue do solo, que permite ao agricultor detectar problemas assintomáticos antes que eles resultem em perdas de rendimento de grãos nas lavouras. A grande vantagem é que as enzimas são mais sensíveis que os indicadores químicos e físicos, detectando com maior antecedência alterações que ocorrem na saúde do solo, em função do seu uso e manejo.

Revista Canavieiros: Vários dados de pesquisa demonstram que, muitas vezes, áreas com características químicas consideradas excelentes possuem o componente biológico comprometido. Poderia comentar sobre isso?

Ieda: A tecnologia BioAS também envolve o cálculo de IQS - Índices de Qualidade do Solo, com base nas propriedades químicas e biológicas em conjunto (IQSFertbio) e separadamente (IQSBio e IQSQuim). No seu estágio atual, a tecnologia está formada para áreas sob cultivos anuais no Bioma Cerrado. A BioAS constitui-se, portanto, em análise complementar a de fertilidade, ao considerar aspectos da saúde do solo que não podem ser diretamente inferidos a partir das análises de rotina tradicionais. É importante ressaltar que há uma relação intrínseca entre a qualidade química e a biológica de um solo e que a BioAS não substitui a análise química. Práticas como a correção da acidez superficial e subsuperficial, e adubações corretivas e/ou de manutenção estão intimamente associadas ao desenvolvimento das plantas. Consequentemente, plantas bem nutridas aportam maiores quantidades de resíduos ao solo, “adubando” as comunidades microbianas com carbono e outros nutrientes.

 

Revista Canavieiros: Foram quantos anos de pesquisas até chegar aos melhores indicadores?

Ieda: Tive a oportunidade de trabalhar com essas enzimas pela primeira vez no meu doutorado, nos Estados Unidos. Quando retornei ao Brasil, em 1999, iniciamos esses estudos no Cerrado. Em 2004, formamos uma Rede de Pesquisa e lançamos a Fase I do Projeto Bioindicadores de Qualidade de Solo, com apoio da Embrapa, do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPDF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal).  Sendo assim, estamos falando de 21 anos de estudos totalmente focados para incluir em nossas análises de solo o componente biológico.

Revista Canavieiros:  O que é estudado dentro do solo?

Ieda: Ao fornecer informações que normalmente passam despercebidas nas análises de química de solo, a BioAS antecipa fenômenos que podem impactar significativamente o desempenho econômico das lavouras, levando o tomador de decisão da propriedade rural a, pelo menos, refletir sobre o assunto. Da mesma forma que acontece quando fazemos um exame de sangue, em que por meio da determinação de vários parâmetros podemos ver como está nosso estado de saúde, a bioanálise do solo serve para avaliar a saúde do mesmo. Seguindo a analogia, as enzimas da BioAS, além de detectar problemas aparentemente assintomáticos, também servem para alertar sobre a necessidade de mudança de postura com relação ao manejo do solo (a famosa vontade de mudar). No caso de seres humanos, essa mudança de postura vai desde o uso de medicamentos até a implementação de um programa de atividades físicas e de modificações nos hábitos alimentares. No caso do solo, a adoção de sistemas de manejo e práticas agrícolas como o plantio direto, a rotação de culturas, o uso de plantas de cobertura e a integração lavoura-pecuária, é o caminho natural para a obtenção de terras saudáveis, biologicamente ativas e produtivas. Nossa expectativa é de que a BioAS auxiliará bastante nesse processo de mudança de postura por parte dos agricultores.

Revista Canavieiros: Como é feita a amostragem, qual a melhor época de coleta e qual o limite de tempo para a análise?

Ieda: Os procedimentos de amostragem para a aplicação da BioAS são semelhantes aos adotados quando o solo é coletado para análises químicas. A única coisa que muda é que, nessa tecnologia, é imprescindível que a profundidade de amostragem seja de 0 a 10 cm, porque esta é a camada diagnóstica. A época de coleta deve acontecer após a colheita das lavouras. Em áreas sob cultivos anuais, são feitas múltiplas coletas em linhas e entrelinhas do último cultivo para formar amostras suficientes do espaço (gleba, talhão etc.). Nos laboratórios de análise de solo, a terra coletada deve ser seca ao ar e passada em peneira com malha de 2 mm.

Revista Canavieiros: Os períodos de estiagem interferem na biologia do solo e na análise?

Ieda: De maneira geral, a atividade biológica do solo é menor na época seca (estiagem) do que na chuvosa. Por isso é muito importante a presença de cobertura viva durante a estação seca e da palhada (“chapéu do solo”). Além de proteger o solo, essas duas práticas promovem um ambiente mais favorável para a vida microbiana, principalmente devido à redução de temperaturas. Quando temos a presença de uma planta viva cobrindo o solo na época seca como a braquiária, por exemplo, também contamos com o fornecimento de compostos carbonados que funcionam como fonte de energia para as comunidades microbianas do solo, minimizando os impactos dos períodos prolongados de estiagem. No caso da tecnologia BioAS, a época de coleta das amostras coincide com o final do período chuvoso, e as amostras de solo são secas ao ar no laboratório antes das análises. Verificamos que esses procedimentos reduzem significativamente a variabilidade interanual, além de facilitar a amostragem para o agricultor e os procedimentos de preparação das amostras de solo nos laboratórios comerciais. 

Revista Canavieiros: Qualquer laboratório de solo pode fazer essas determinações? O que é preciso?

Ieda: As determinações de atividade enzimática envolvem procedimentos analíticos simples e acessíveis aos laboratórios de análises de solo. Não é necessário, por exemplo, investimentos com a compra de novos equipamentos, apenas reagentes e vidrarias. Como o sucesso da BioAS depende muito dos laboratórios comerciais de análises de solo, para disponibilizar essa tecnologia para os produtores brasileiros a Embrapa está capacitando esses laboratórios.  A tecnologia BioAS foi lançada em 23 de julho de 2020 em parceria com uma rede piloto composta por oito laboratórios, com atuação no Cerrado, capacitados pela Embrapa para prestar este novo serviço de análise de solo. A partir dessa experiência piloto, a Embrapa procederá a ofertas públicas periódicas para efeito de cadastramento, seleção, estabelecimento de instrumentos jurídicos relativos ao processo de treinamento, preparação para atuação junto ao mercado e habilitação de novos laboratórios para serem integrados à Rede Embrapa BioAS. A habilitação, etapa final de integração à Rede, compreende a aprovação técnica baseada em ensaios interlaboratoriais, bem como a celebração de contrato comercial. Os laboratórios interessados também podem manifestar interesse por meio do SAC da Embrapa Cerrados, para efeito de constarem na base de potenciais parceiros.

Revista Canavieiros: Essa tecnologia está disponível apenas no Cerrado? O estudo vai se expandir para outros biomas?

Ieda: No presente momento, os algoritmos de interpretação da BioAS estão formatados apenas para os cultivos anuais do bioma Cerrado. As tabelas de interpretação para o Estado do Paraná já estão sendo finalizadas e nos próximos três anos nossa meta é ampliar a BioAS para outras culturas/regiões (ex: BioAS Cana-de-açúcar, BioAS Pastagens, BioAS Café, etc.)

Revista Canavieiros: Quantos hectares já estão sendo cobertos pela tecnologia?

Ieda: Como a BioAS pode ser utilizada em áreas de cultivos anuais no bioma Cerrado, algo em torno de 22 milhões de hectares são cobertos por essa tecnologia.

Revista Canavieiros: O que é esperado para o futuro com essa tecnologia?

Ieda: Atualmente, em muitas fazendas do Cerrado, as decisões de manejo de solo são influenciadas por aspectos operacionais e/ou econômicos, em detrimento dos agronômicos. Assim, a BioAS poderá se tornar um parâmetro para reforçar a importância da adoção de sistemas conservacionistas, melhoradores da qualidade de solo. A presença de indicadores relacionados ao funcionamento da maquinaria biológica do solo nas análises comerciais de rotina representa um desafio para os agrônomos e técnicos do setor rural, pois exigirá, muitas vezes, uma reavaliação das práticas de manejo adotadas na propriedade agrícola. Por todas essas razões é que a BioAS é considerada a mais nova aliada para a sustentabilidade da agricultura brasileira. Além disso, o uso da bioanálise como parte das rotinas de análise de solo também favorecerá a inserção do país na bioeconomia, fornecendo métricas para atestar o crescimento agrícola com sustentabilidade. Um processo em que todos saem ganhando: o agricultor, o país, a sociedade e o meio ambiente. Resumindo, nossa expectativa é que, por meio da BioAS, iniciativa única no mundo, o Brasil possa se tornar o embaixador mundial da saúde do solo e que os agricultores que investem em sistemas de manejo que favoreçam a saúde do solo possam ser remunerados por esse importante serviço ambiental.

Revista Canavieiros: A ILP - Integração Lavoura Pecuária e a rotação de cultura são importantes para a saúde do solo?

Ieda: Sem dúvida. Por imitarem a natureza, a adoção de sistemas de manejo e práticas agrícolas como o plantio direto (que é baseado no não revolvimento do solo), a rotação de culturas e uso de plantas de cobertura (que aumentam a biodiversidade nos agroecossistemas) e a ILP (que insere o componente animal na lavoura) são o caminho natural para a obtenção de solos saudáveis, biologicamente ativos e produtivos.

Revista Canavieiros: O solo tem memória?

Ieda: Sim, o solo possui o que chamamos ilustrativamente de “memória”. O grau de revolvimento mecânico, juntamente com a qualidade e a quantidade do resíduo vegetal que são aportados, faz com que os diferentes sistemas de manejo deixem sua impressão digital, sua assinatura biológica, no solo (Figura 1). A capacidade de guardar em sua “memória” o tipo de manejo ao qual ele é submetido está intimamente relacionada à sua parte viva, ao seu componente biológico. O acesso à memória do solo, por meio de determinações da atividade enzimática, é possível devido ao fato do somatório da atividade de enzimas dos organismos vivos (microrganismos, plantas e animais) e de gerações passadas de organismos que estiveram presentes (componente abiôntico) e ficam adsorvidas nas partículas de argila e na matéria orgânica. Assim, além dos aspectos relacionados à saúde do solo, as determinações de atividade enzimática são uma das vias de acesso à sua “memória”aceddo. Por meio da BioAs podemos alcançar as histórias que o solo tem para nos contar, mas que não conseguimos perceber apenas com as informações obtidas com as análises de química.

Revista Canavieiros: O fato do solo produzir bem é um indicativo de que ele é saudável?

Ieda: Não. Todo solo saudável é produtivo, mas nem todo solo produtivo é saudável. Ou seja, é possível ter um solo com baixa qualidade, cujas elevadas produtividades estejam relacionadas a entradas de insumos em doses muito acima das recomendadas para solos bem manejados. Essa condição não é sustentável em longo prazo, pois pode resultar em contaminações do ambiente e prejuízos aos agricultores. O conceito de saúde vai muito além da produtividade biológica das lavouras e das pastagens.

Revista Canavieiros: Recentemente a senhora participou de um painel num evento voltado para as mulheres. Como tem visto a participação cada vez maior das mulheres pesquisadoras no mercado de trabalho?

Ieda: Embora ainda haja bastante espaço para aumentar, vejo com muito entusiasmo e satisfação a participação cada vez maior das mulheres na Ciência e Tecnologia no Brasil, com grandes e relevantes contribuições. Na pesquisa agronômica temos o exemplo da saudosa dra. Johanna Döbereiner, grande ícone e fonte de inspiração para toda uma geração de cientistas, que inclusive foi indicada ao Prêmio Nobel.

Os sistemas de manejo deixam suas marcas na "memória" do solo. Desenho: Fabiano Bastos, Embrapa Cerrados